Anos a fio, o Tribunal Constitucional – e os tribunais comuns, anote-se – julgaram conforme à Constituição a irrecorribilidade das decisões condenatórias proferidas pelas Relações, quando em recurso de decisões absolutórias de 1ª instância.
Vale a pena lembrar que a versão inaugural do Código de Processo Penal 87, tão saudada por largos setores, consagrava um regime de recursos que excluía da recorribilidade as decisões proferidas, em 2ª instância, pelas Relações. Era a resposta política que procurava evitar que o boom processual pós abril inviabilizasse o funcionamento regular e eficaz do STJ e fosse comportável pela magreza de dotações orçamentais que os Executivos atribuíam à Justiça.
A primeira inversão de sentido dá-se com a reforma de 98, que restringe a irrecorribilidade das decisões da Relação à dupla conforme absolutória, aos crimes com pena aplicável não superior a 5 anos de prisão ou com pena de multa, e aos crimes com pena aplicável não superior a 8 anos de prisão, se ocorresse dupla conforme.
Em 2007, introduz-se a dupla conforme para as decisões condenatórias em que a pena aplicada seja superior a 8 anos de prisão, agravando, assim, o regime de 98, mas abre-se o recurso às mais decisões da Relação que não beneficiem da dupla conforme, excluindo, todavia, as condenações em pena não privativa da liberdade.
Em 2013, o legislador, em consonância com os lóbis das magistraturas e com os setores ultramontanos da sociedade portuguesa, passa a considerar recorrível o acórdão absolutório da Relação, quando proferido sobre decisão condenatória de 1ª instância, que aplicou pena superior a 5 anos de prisão, e veda o recurso de acórdãos da Relação que apliquem pena de prisão não superior a 5 anos.
Com tudo isto viveu e conviveu o Palácio Ratton.
Até que, em 13 de julho passado, por sete votos contra seis, foi declarada a inconstitucionalidade da norma extraída do art.º 400º, nº 1, alínea e), do CPP, em termos de ficar vedado recurso de acórdão condenatório da Relação em pena não superior a 5 anos de prisão, proferido em apreciação de sentença absolutória de 1ª instância (cf. Acórdão 429/2016, de 13 de julho).
Até aqui, o Tribunal Constitucional tinha, invariavelmente, considerado que o direito ao recurso garantido pela Lei Fundamental – e de modo expresso, a partir da revisão de 1997, no art.º 32º, nº 1, da CR – se bastava com o duplo grau de jurisdição, nada impedindo, em alinhamento com a CEDH, que se considerasse conforme à Constituição da República a exclusão do direito ao recurso, quando fundada na menor valia dos valores a respeitar e na indispensabilidade de assegurar um regime viável e célere de recursos; tudo por aplicação da restrição proporcional de direitos, liberdades e garantias, consentida pelo art.º 18º, nº 2, da CR.
A decisão de agora vem sustentar que o direito ao recurso não se esgota com a existência de duplo grau de jurisdição, por isso que, tendo a garantia constitucional exatamente por objeto decisões condenatórias, vedar ao arguido o recurso de condenação em pena privativa de liberdade, quando absolvido em 1ª instância, significa fazer tábua rasa da garantia. E mesmo que se pretenda sustentar que o arguido teve a possibilidade de exercer o contraditório na contra-alegação da minuta do recorrente, foi-lhe é vedado defender-se em sede de aplicação da pena e sua medida. Ora com ensina Figueiredo Dias, em lição recordada no Acórdão, é de há muito dado por adquirido na dogmática das consequências jurídicas do crime que a determinação judicial da pena concreta constitui «estruturalmente aplicação do direito», deixando «por toda a parte de ser considerado como uma questão relevando exclusiva ou predominantemente da subjetividade do julgador, da sua arte de julgar».
Este decreto de inconstitucionalidade, como faz notar Pedro Machete, no seu voto de vencido, não é, porém, sem consequências.
É que interposto recurso para o STJ de acórdão condenatório em pena não superior a 5 anos de prisão, proferido, em “1ª instância” pelas Relações, passam a ser aplicáveis, no julgamento do Supremo, os artºs 428º, 430º e 431º do CPP, e inaplicável o art.º 434º do mesmo compêndio legal
Por esta via, é exatamente uma Juíza Conselheira, designada pela ala mais conservadora do Parlamento, quem, relatora do Acórdão 419/2016, vem lembrar à Câmara que o direito ao recurso é para levar a sério.
Fica a faltar o tema das sanções acessórias, decididas pela Relação, em recurso de sentença absolutória, quando essas sanções podem pôr tão em causa a vida do condenado como o encarceramento. É, obviamente, o caso da proibição de exercício de função, atividade ou profissão, que, por isso, tarda em ser levado ao Tribunal Constitucional.
Manuel Magalhães e Silva | Fórum Penal – Associação de Advogados Penalistas
Subscreva a newsletter e receba os principais destaques sobre Direito e Advocacia.
[mailpoet_form id="1"]