Um dos problemas puramente académicos e com escassa ou nenhuma relevância prática que, por vezes, se discute nos bancos das faculdades de Direito consiste no dilema dos gémeos siameses, os quais, recorde-se, encontram-se unidos por uma determinada parte do corpo: se um deles matar alguém pode ir preso? Tal solução seria aparentemente injusta pois implicaria o encarceramento do gémeo inocente, embora também cause estranheza que a sanção por homicídio possa ser coisa diferente da pena de prisão.
Como é óbvio não vou aqui entediar o leitor com qualquer tentativa de deslindar o enigma, até porque, provavelmente, uma possível solução não teria qualquer serventia para a resolução dos problemas reais que, diariamente, se colocam ao sistema de justiça.
Ainda assim, não queria deixar de assinalar que, recentemente, no domínio das contra-ordenações laborais, o legislador português, sempre atento a estes intrincados problemas de filosofia jurídica pura, parece ter conseguido resolver, com candura e sem qualquer irritação dogmática, o dilema dos gémeos siameses.
A solução vai mais ou menos neste sentido: se várias empresas estão ligadas entre si por uma relação de participação recíproca, de domínio ou de grupo, então, cada uma delas responde solidariamente pelos deveres jurídicos e pelas coimas laborais que se apliquem às outras. Imagine-se um grupo empresarial com dez ou vinte empresas diferentes. Não se trata sequer de um caso de escola, sendo antes um caso da vida relativamente frequente. Pois bem, nesse caso, se uma das referidas empresas do grupo económico for condenada em coima, o Estado pode exigir o respetivo valor a qualquer uma das outras empresas que, com a primeira, apresente uma das referidas ligações inter-societárias, as quais, convém sublinhar, não se limitam à situação em que uma sociedade-mãe domina totalmente uma sociedade-filha (cfr. artigos 481.º e ss do Código das Sociedades Comerciais).
Costuma ser dito que a realidade tem sempre mais imaginação do que o legislador … exceto no domínio das contra-ordenações, onde o legislador revela uma tal criatividade — sempre direccionada no sentido da arrecadação voraz de receita, bem entendido — que é muito difícil que a realidade o consiga acompanhar, sem duvidar se já não terá entrado no domínio da pura ficção.
Para se perceber melhor esta solução veja-se a alteração ao artigo 551.º, n.º 4, do Código do Trabalho, introduzida pela Lei n.º 28/2016, de 23 de Agosto, que promove as formas modernas de trabalho forçado. Passa a dizer agora a referida disposição legal: «O contratante e o dono da obra, empresa ou exploração agrícola, bem como os respetivos gerentes, administradores ou diretores, assim como as sociedades que com o contratante, dono da obra, empresa ou exploração agrícola se encontrem em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo, são solidariamente responsáveis pelo cumprimento das disposições legais e por eventuais violações cometidas pelo subcontratante que executa todo ou parte do contrato nas instalações daquele ou sob responsabilidade do mesmo, assim como pelo pagamento das respetivas coimas».
Tal disposição visa essencialmente as situações de subcontratação laboral, nas quais o subcontratado executa o contrato nas instalações ou sob a responsabilidade do contratante. Ainda assim, tal circunstância não diminui a relevância prática do tema, antes a potencia, na medida em que é frequente as empresas e ainda mais os grupos económicos, pelo menos em parte da sua atividade, recorrerem ao sistema de outsourcing.
Neste novo regime jurídico, existem duas circunstâncias que causam perplexidade.
Por um lado, o legislador estabeleceu que as empresas que se encontram numa relação inter-societária de participação recíproca, de domínio ou de grupo são solidariamente responsáveis pelo pagamento das coimas aplicadas.
Há muito tempo que o legislador já olhava para o regime das contra-ordenações, não exclusivamente como um mecanismo de censura e punição de factos ilícitos que afetam a organização social, mas também, e por vezes até preferencialmente, como forma de arrecadação de receita e de composição do orçamento das autoridades administrativas.
Contudo, nunca antes o legislador tinha ido tão longe na sua intenção de assegurar a efectiva cobrança do valor da coima, permitindo agora que se possa perseguir o dinheiro através das diferentes relações inter-societárias que o infractor estabeleça com outras sociedades, multiplicando exponencialmente e sem critério suficiente os patrimónios que podem servir de garantia à sua insaciável pretensão de arrecadação pecuniária.
A este propósito, salvo honrosas exceções, a jurisprudência constitucional tem assistido passivamente à descaracterização das contra-ordenações enquanto instrumento de reação punitiva face a ilícitos que afetam a boa ordenação social e à sua transmutação em mecanismo de pura engenharia social e financeira, de que é exemplo o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 180/2014 que sufragou uma alegada perspetiva utilitarista da prevenção contra-ordenacional, a qual aparentemente autoriza a consagração de mecanismos de garantia patrimonial de mera cobrança da coima, como aquele que agora analisamos.
Por outro lado, o legislador não se limitou a consagrar a responsabilidade solidária pelo pagamento da coima, consagrando também a responsabilidade solidária pelo cumprimento das disposições legais e pela respetiva violação. Lê-se e relê-se e fica-se sempre na dúvida sobre aquilo que o legislador quis efectivamente consagrar. O que significa responsabilidade solidária pelo cumprimento de disposições legais?
Quererá isto dizer que a responsabilidade contra-ordenacional de uma empresa que recorra ao outsourcing se comunica e transmite às demais empresas com as quais se encontre numa das referidas relações inter-societárias, sempre que houver infração? Será isso compatível com o princípio da culpa e da intransmissibilidade das penas?
Ou quererá antes dizer que as empresas do grupo passam a ter um dever quase Orwelliano de se vigiar e controlar mutuamente, numa nova teia interminável e labiríntica de deveres, sempre que houver outsourcing por parte de uma delas? Contudo, neste caso, qual o sentido de se afirmar que a responsabilidade é solidária? Nesse caso, cada empresa teria simplesmente, a título pessoal, um dever principal: a empresa contratante teria o dever principal de vigiar o subcontratado. As outras empresas do grupo teriam o dever principal, e seguramente hercúleo, de vigiar a vigilância exercida pela empresa contratante.
Onde é que este novo caminho que está a ser desbravado pelo legislador português, aparentemente sem bússola nem mapa, nos vai levar? A resposta é simples: à cobrança do dinheiro que é o destino a que o legislador tem pressa de chegar. O problema é que, para lá chegar com a urgência pretendida, o legislador vai tendo que deixar, na berma da estrada, alguns dos pesos que carrega há largos anos, como o princípio da culpa e da intransmissibilidade das penas, o princípio da excecionalidade da responsabilidade objetiva no âmbito da responsabilidade civil e a ideia de dever legal enquanto imposição de um comportamento ativo ou omissivo que o agente minimamente controla e domina e que, como tal, está em condições de cumprir.
João Matos Viana | Fórum Penal – Associação de Advogados Penalistas
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