Crise económica e proteção da morada de família no Brasil e em Portugal

No ordenamento brasileiro, o princípio da responsabilidade patrimonial (pelo qual a responsabilização do devedor por suas dívidas está vinculada ao seu patrimônio, presente e futuro) admite exceções, excluindo alguns bens para o cumprimento das obrigações do devedor. Assim, além dos bens excluídos pelo Código de Processo Civil, também está livre de penhora o bem de família, regulado por lei especial (Lei n. 8.009/90) e pelos Arts. 1.711 a 1.722 do Código Civil.

Essa proteção especial no território brasileiro possui a sua raiz em duas questões facilmente identificáveis: o Brasil é um país cujas últimas décadas foram fortemente marcadas por vicissitudes econômicas; além disso, não obstante a instalação do Plano Real tenha trazido uma fase de estabilidade de preços, o mesmo não se pode dizer das taxas de juros. Assim, ainda que o país estivesse vivendo tempos de calmaria econômica, os juros nunca desceram a patamares razoáveis.

No âmbito social, é indubitável que os juros pagos nas operações de crédito no Brasil (cheque especial, cartões de crédito, empréstimos) estão entre os mais caros do mundo. Os juros de cheque especial podem chegar a 311% e os do cartão de crédito a mais de 470% ao ano, a depender do banco. Assim, em um cenário de crise econômica e taxas dessa magnitude, a proteção do bem de família é mais do que uma cautela do legislador em respeito ao direito à moradia. Trata-se de uma genuína necessidade diante de tal indecência numulária.

O direito à moradia é considerado pela Constituição Federal brasileira como um direito social no Art. 6º. Esse direito, portanto, é considerado inerente à pessoa humana, seja como pressuposto do direito à integridade física, seja como parte da estrutura moral do indivíduo.

De acordo com o Art. 1.712, do CC,  o bem de família consistirá em prédio residencial urbano ou rural, com suas pertenças e acessórios, destinando-se em ambos os casos a domicílio familiar, e poderá abranger valores mobiliários, cuja renda será aplicada na conservação do imóvel e no sustento da família.

Portanto, a ideia de família possui relevo para determinação da impenhorabilidade do denominado de bem de família que é imóvel residencial próprio do casal ou da entidade familiar, e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses elencadas na Lei 8.009/90 (como por exemplo, tributos relativos ao prédio ou despesas de condomínio, obrigação decorrente de fiança locatícia, dívida de alimentos, execução de hipoteca sobre imóvel oferecido como garantia pela família, etc.).

Os titulares ou beneficiários do direito à impenhorabilidade da morada da família, no Brasil, são todos os componentes da entidade familiar em causa, que tenham o imóvel como sua residência e não somente o proprietário. A salvaguarda da pessoa humana e sua dignidade fez com que o Superior Tribunal de Justiça outorgasse uma ideia ampla à noção de família para fins de tutela da habitação. De acordo com a Súmula 364, o conceito de impenhorabilidade de bem de família abarca também o imóvel de pessoas solteiras, separadas, divorciadas ou viúvas. Trata-se do que alguma doutrina chama de família unipessoal ou single.

Em Portugal, embora exista uma consagração constitucional do direito à moradia no art. 65º da CRP, não existe uma proteção da casa de morada da família contra a penhora, nos moldes do sistema brasileiro. Em virtude da forte crise econômica que a Europa e Portugal vêm enfrentando nos últimos anos, foi apresentada à Assembleia da República a Petição n. 380/XII/3ª, da iniciativa de Joaquim Jesus Magalhães Fonseca (subscrita por 4718 cidadãos), que solicitava o estabelecimento da impenhorabilidade do bem de família. Tal proposta inspirou-se na lei brasileira.[1]

Algum tempo depois, a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira apresentou Proposta de lei à Assembleia da República para alteração do Código de Processo Civil e do Código de Procedimento e de Processo Tributário, de modo a instituir a impenhorabilidade do bem de família em determinadas conjunturas. Todavia, até agora, essa proteção só consta em Diplomas fiscais. Em maio de 2016, entrou em vigor a Lei n. 13/2016 que promoveu alterações no Código de Procedimento e de Processo Tributário e na Lei Geral Tributária, para proteger da casa de morada de família no âmbito dos processos de execução fiscal.

No confronto entre a segurança jurídica decursiva da garantia ao crédito (de natureza obrigacional) e o direito à moradia (de natureza existencial), terminou o ordenamento brasileiro por conceder primazia ao segundo. Portugal, ainda que de maneira mais tímida e ainda restrita ao âmbito tributário, também parece caminhar no mesmo sentido. Parece uma solução ajustada aos valores insculpidos na Constituição da República Portuguesa que, notoriamente, inspirou a Constituição brasileira.

Na hodierna sociedade de hiperconsumo, que vive à mercê das vicissitudes econômicas dos seus Estados e do capitalismo selvagem que domina os sistemas financeiros (com suas políticas monetárias indecentes, mormente no Brasil), é preciso que existam mecanismos e remédios para salvaguardar o patrimônio mínimo dos devedores de boa-fé.

[1]Cfr. Ofício n. 743/XII/1ª – CACDLG – 2014 e a petição. Disponível em:
http://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalhePeticao.aspx?BID=12505.

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