É hoje um lugar-comum falar-se em mediatização da justiça penal. Há alguns anos os processos-crimes eram alvo do interesse da comunicação social em razão do mediatismo dos seus protagonistas. Actualmente já não é assim. A cobertura noticiosa democratizou-se, deixando de só se focar nos casos que envolvem notáveis. Num ambiente de proliferação de canais televisivos noticiosos em acesa competição, os temas criminais são um conteúdo que vende bem, além de apresentarem baixos custos de produção. Não será de estranhar, por isso, que o tempo dedicado à cobertura dos casos da justiça tenha aumentado exponencialmente, seja em termos de tratamento noticioso seja em espaços de comentário, que quase já rivalizam com os seus congéneres futebolísticos. Esta realidade incontornável erigiu a justiça penal à categoria de espectáculo e comporta, inevitavelmente, efeitos perversos.
Um desses efeitos é o da erosão da presunção de inocência. A divulgação maciça de informação relativa a inquéritos pendentes cria, junto da opinião pública, um pré-juízo de culpabilidade dos visados. Na maioria dos casos os factos noticiados provêm de fontes da investigação – o segredo de justiça é, consabidamente, um passador de malha larga – e são frequentemente trazidos a público revestidos de uma entoação sugestiva. Exemplo disto é dado pelo recente inquérito relativo à morte de dois instruendos, ocorrida no último curso de formação de Comandos. A profusa divulgação de trechos da promoção do MP, que supostamente referia que os instrutores eram “movidos por ódio patológico, irracional contra os instruendos”, provocou celeuma quando, na sequência da apresentação dos detidos a primeiro interrogatório judicial, veio a saber-se que nenhum deles ficaria sujeito a medida de coacção privativa da liberdade. Este exemplo serve igualmente para demonstrar outro daqueles efeitos perversos, que é a pressão social exercida sobre os julgadores no sentido das condenações. Não há memória de um caso mediático em que a vox populi pendesse para a inocência dos visados e fosse de molde a aceitar decisões absolutórias. É certo que os magistrados devem estar preparados para lidar com a pressão da opinião pública. Mas quem anda no foro sabe que, subliminarmente, aquela pressão algum efeito produz, pese embora a sempre autoproclamada imunidade a pressões.
Esta nova realidade reclama dos advogados, dos penalistas em especial, uma intervenção pública militante na defesa dos princípios do Estado de Direito, particularmente dos princípios estruturantes do processo penal. Não se vê por que razão essa intervenção pública não possa ter lugar no contexto do patrocínio forense exercido em processos que sejam alvo de cobertura mediática. Neste tocante é criticável o regime constante do art.º 93.º do actual EOA, que manteve inalterado o anteriormente vigente (art.º 88.º do EOA de 2005). A proibição de o advogado se pronunciar publicamente sobre processos pendentes que lhe estejam confiados é, nos dias de hoje, um anacronismo. Da mesma forma que não se vislumbra fundamento atendível para os mecanismos de autorização e de comunicação aos presidentes dos Conselhos Regionais competentes, a que o EOA condiciona a prestação de declarações públicas. Na verdade, desde que em estrita observância dos deveres deontológicos que norteiam o exercício da profissão, não se vê motivo para que o advogado, por sua decisão conscienciosa, de forma livre, contida e responsável, não possa prestar declarações públicas sobre processos pendentes. No entanto, tal só se justificará se e quando, pela natureza do caso, este seja já objecto de cobertura noticiosa. Por outras palavras, a possibilidade de se pronunciar publicamente sobre o caso nunca poderá legitimar o advogado a, por sua iniciativa, recorrer à comunicação social com a finalidade de procurar obter vantagens, para si ou para quem patrocine.
Independentemente da solução preconizada em sede de direito a constituir, o confronto da realidade presente com a efectividade da observância do estatuído – e vigente – no EOA revela-se assaz preocupante. Casos recentes, porém, transpõem já o domínio do espectáculo da justiça e relevam no plano da justiça espectáculo, aquele em que os agentes do foro ocupam eles próprios um lugar no palco. Até que ponto tal será legítimo ou justificável é algo merecedor de profunda reflexão, a qual não se compadece muito mais com a letargia em que parecem estar mergulhados os responsáveis da OA.
Paulo de Sá e Cunha | Fórum Penal – Associação de Advogados Penalistas
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