Nos últimos tempos, temos assistido a diversas iniciativas no âmbito do direito da família, inclusive a nível da união europeia, sendo que no nosso ponto de vista, também fazem parte integrante deste direito a proteção de pessoas especiais e idosas.
Sabemos que a esperança média de vida aumentou significativamente nas últimas décadas. Os últimos dados publicados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) revelam-nos que os portugueses vivem até aos 81,1 anos estando assim no grupo de 29 países do mundo com uma esperança média de vida de 80 anos ou mais.
Tal realidade também se traduz num aumento das doenças ligadas à idade como o alzheimer e/ou outras doenças degenerativas do foro mental que muito fragilizam designadamente a nossa população mais idosa principalmente aqueles que vivem sozinhos, pois é sabido que quem está isolado perde capacidades mais depressa.
Segundo os últimos dados estatísticos conhecidos, existem cada vez mais idosos declarados incapazes pela nossa Justiça de gerir a sua pessoa e os seus bens. Veja-se, aliás, que só no ano de 2012 registou-se um aumento de 11,3% – 2103 no total – em relação ao ano anterior no que diz respeito à pendência de ações de interdição e inabilitação nos nossos Tribunais, número este que segundo a Direção Geral de Política de Justiça tem vindo a aumentar a este mesmo ritmo desde 2002.
Neste contexto urge repensar o nosso atual sistema de proteção destes adultos mais vulneráveis.
Com efeito, usámos propositadamente esta expressão e não a constante da nossa atual lei – “incapazes” – por considerarmos que essa terminologia se revela manifestamente desadequada, assumindo inclusivamente uma conotação discriminatória que em muito contribui para a própria criação de convicções e preconceitos.
Sabemos que a alteração de terminologias e conceitos leva à alteração de mentalidades.
Assim, defendemos que o primeiro dos vários passos a serem tomados na proteção dos cidadãos idosos e dos cidadãos adultos portadores de deficiência passa precisamente pela renovação da terminologia acolhida pela nossa legislação nacional, eliminando as terminologias do “incapaz”, “interdito” e “inabilitado”.
Impõem-se, pois, acabar com a terminologia de conceitos como a “interdição” e a “inabilitação” substituindo-se por terminologias mais integradores como por exemplo “maiores protegidos por lei” ou até “adultos mais vulneráveis”.
A este respeito, aliás, em conformidade com os próprios instrumentos internacionais, recordamos que foi extinta da nossa legislação interna a terminologia de “menor” para instituir o de “Criança” – v.g. com a entrada em vigor da Lei n.º 141/2015, de 08 de setembro que revogou a Organização Tutelar de Menores aprovando o Regime Geral do Processo Tutelar Cível -, não se ignorando que se tratava de um conceito civilista para o direito.
No entanto, e apenas por uma questão de facilidade de exposição do presente tema, socorrer-nos-emos dos conceitos previstos na lei.
No nosso ordenamento jurídico os meios previstos com vista à proteção do cidadão idoso e/ou adulto portador de deficiência são, por excelência, a inabilitação e a interdição – regulados nos artigos 138.º a 152.º do Código Civil.
Ambas as figuras enquadram-se no âmbito da (in)capacidade de exercício de direitos, a qual, ao invés da capacidade jurídica no sentido de capacidade jurídica de gozo que se define pela capacidade de ser sujeito de um círculo, maior ou menor, de relações jurídicas, a capacidade de exercício define-se pela aptidão de qualquer pessoa para, pessoal e autonomamente, atuar e/ou agir nessas mesmas relações jurídicas das quais é titular.
Destarte, tanto a interdição como a inabilitação são aplicáveis à incapacidade permanente de pessoas maiores, contudo, esta última tem em vista situações relativamente menos graves do que aquelas que justificam a interdição.
Mais especificamente, a inabilitação aplica-se a cidadãos que, devido a anomalia psíquica, surdez-mudez, cegueira, habitual prodigalidade, uso de bebidas alcoólicas ou de estupefacientes, se mostrem incapazes de reger convenientemente o seu património (cfr. artigo 152.º do Código Civil) sendo que a interdição tem em vista todos aqueles que por anomalia psíquica, surdez-mudez ou cegueira se mostrem incapazes de governar não só o seus bens mas também a sua própria pessoa (cfr. artigo 138.º, n.º 1, do Código Civil).
Na inabilitação o efeito principal passa pela designação de um curador que fica incumbido de assistir (e não representar ou substituir) o inabilitado na prática de atos de disposição patrimonial entre vivos (cfr. artigo 153.º, n.º 1, do Código Civil).
Ao invés, em casos de interdição, é nomeado de um tutor, a quem caberá agir enquanto representante do interdito, numa lógica de representação e de substituição como no próprio regime da menoridade (cfr. artigo 139.º).
Assim ao tutor compete não só zelar pela boa administração do património do interdito mas também pela definição e acompanhamento daquele que é o seu próprio projeto de vida.
Quer a inabilitação e a interdição são decretadas (sendo competente o Tribunal judicial do local do domicílio do interditando ou inabilitando) – no âmbito de um processo especial, estabelecido nos artigos 891.º a 905.º do Código de Processo Civil.
A este respeito, ainda, importará esclarecer que o Tribunal não fica vinculado ao pedido que vier a ser formulado pelo Requerente podendo optar por qualquer uma das duas figuras considerando os factos e a prova que nos autos vier a ser produzida tal como decorre do artigo 901.º do Código de Processo Civil.
A verdade é que estes institutos da “interdição” e da “inabilitação” estão longe de se poderem considerar boas soluções, principalmente quando olhamos para a legislação interna de outros países europeus no âmbito do regime das incapacidades.
A mero título de exemplo na Alemanha e na Áustria estes institutos foram abolidos, substituindo-se por um único tipo básico de medida, adaptável na sua configuração ao caso concreto e, bem assim, às necessidades da situação.
Noutros casos, como sucedeu em França, Bélgica e na nossa vizinha Espanha, registou-se uma substancial alteração sobretudo no que respeita à inclusão de outras medidas protetivas (mais flexíveis e latas) de pessoas declaradas incapazes.
Em Portugal também não falta quem critique o nosso regime legal, sendo a este respeito de chamar à colação a iniciativa do projeto-lei n.º 61/XIII/1.ª integrado na Estratégia de Proteção ao Idoso aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 63/2015, de 25 de agosto, sem prejuízo de alguns normativos que impunham uma nova ponderação e reformulação.
Este projeto-lei visava precisamente redesenhar o regime das incapacidades e do seu suprimento, até porque estes institutos mantêm-se inalterados desde a primeira versão do Código Civil de 1966.
Propunha-se pois a atualizar estes institutos, adotando um novo enquadramento legal direcionado para a restrição das restrições, também em respeito pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência adotada na Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque, no dia 30 de março de 2007, a qual foi aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 56/2009, de 30 de julho, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 71/2009, de 30 de julho.
Ora, relativamente à Convenção, consigna-se no artigo 1.º que o seu objeto é promover, proteger e garantir o pleno e igual gozo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente. Desiderato que não encontramos reflexo na nossa legislação atual.
Com efeito, entendemos que estamos perante um sistema verdadeiramente ablativo que se traduz num desfavorecimento da própria pessoa do incapaz muitas vezes em prol de interesses de pendor mais patrimonial. Estamos perante institutos pouco centrados na pessoa e nas suas necessidades pessoais, designadamente na definição do seu projeto de vida.
Salvo o devido respeito por melhor opinião, estes institutos são anti-terapêuticos e até disruptivos não preocupados com a reintegração ou com a criação de condições para que os próprios possam exercer plenamente os seus direitos de forma autónoma e responsável. Referimo-nos, nomeadamente, e quando tal é possível, aqueles casos menos graves.
Antes assumindo automaticamente que se trata de uma incapacidade plena e permanente, independentemente do tipo, variação ou grau, a qual determina, por conseguinte, a imediata limitação, ou inibição, do exercício de direitos.
Por outro lado, não se confere legitimidade à própria pessoa para requerer medidas de proteção que considere mais adequadas à sua situação concreta, nem, tão pouco, para indicar, ou meramente sugerir tutor que deva ser nomeado para o assistir (ou mesmo rejeitar determinada pessoa). Em suma, para manifestar a sua vontade e preferência na tomada de qualquer decisão relativa à sua própria pessoa.
Ora, ilustrativo do que se acaba de referir é o facto de, mesmo com os avanços da tecnologia e da medicina, a surdez-mudez e a cegueira continuarem à luz da nossa legislação atual a configurar fundamento do decretamento da interdição.
Nos dias que correm, não se pode justificar que limitações meramente ao nível sensorial (audição, fala e audição) possam conduzir, automaticamente, a tal resultado pois sabemos que à partida não implicam uma incapacidade do próprio de gerir não apenas o seu património mas a sua própria vida.
Com efeito, podemos dizer que estes institutos acabam por atribuir uma permanente condição de verdadeira inferioridade jurídica na medida em que não atendem à idoneidade ou aptidão concreta da própria pessoa.
Entendemos, assim, que se deverá incluir um regime intermédio que permita uma adaptação a situações meramente temporárias ou controladas, como acontece, por exemplo, no caso de doenças degenerativas associadas à idade, ou, para os referidos casos de surdez-mudez e cegueira que, na maioria dos casos, não implicam uma incapacidade total e permanente para a prática de atos.
A este respeito, e a mero título de exemplo, refira-se que quanto aos interditos, e bem assim quanto aos inabilitados por anomalia psíquica, o nosso Código Civil estabelece expressamente a sua incapacidade de gozo para contrair casamento [cfr. artigo 1601.º, alínea b)], para perfilhar (cfr. artigo 1850.º, n.º 1) e bem assim para exercer as responsabilidades parentais [artigo 1913.º, n.º 1, alínea b)], para testar [artigo 2189.º, alínea b).
O declarado “interdito”, ou “inabilitado” por anomalia psíquica, não pode igualmente constituir uma união de facto protegida (cfr. artigo 2.º, alínea b), da Lei nº 7/2001, de 11 de maio) e não pode ter acesso às técnicas de procriação medicamente assistida (artigo 6º, nº 2, da Lei de Procriação Medicamente Assistida).
Restrições que consideramos de constitucionalidade duvidosa, para além de desconformes com as disposições do artigo 23.º da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência adotada na Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque, no dia 30 de março de 2007, a qual foi aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 56/2009, de 30 de julho, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 71/2009, de 30 de julho, que estabelece:
“os Estados Partes tomam todas as medidas apropriadas e efetivas para eliminar a discriminação contra pessoas com deficiência em todas as questões relacionadas com o casamento, família, paternidade e relações pessoais, em condições de igualdade com as demais, de modo a assegurar o reconhecimento do direito de todas as pessoas com deficiência, que estão em idade núbil, em contraírem matrimónio e a constituírem família com base no livre e total consentimento dos futuros cônjuges”, determinando-se ainda no n.º 2 do mesmo preceito legal que: “Os Estados Partes asseguram os direitos e responsabilidades das pessoas com deficiência, no que respeita à tutela, curatela, guarda, adoção de crianças ou institutos similares, sempre que estes conceitos estejam consignados no direito interno; em todos os casos, o superior interesse da criança será primordial. Os Estados Partes prestam assistência apropriada às pessoas com deficiência no exercício das responsabilidades parentais.”
Temos de defender obrigatoriamente que a incapacidade nunca deve ser vista como um pressuposto automático, sempre que falamos de pessoas idosas ou adultas portadoras de deficiência.
Afigura-se pois necessária não só uma avaliação casuística aquando da limitação do exercício de direitos por motivo de incapacidade, mas também a consagração de normas de caráter transitório que se apliquem a situações de incapacidade meramente temporária.
Como se acaba de referir existem determinados graus, medidas e tipos de incapacidade que não determinam, per si, a perda total de capacidades cognitivas para a prática de determinados atos nomeadamente aqueles de caráter pessoal.
Deste modo, tais restrições só lograrão nos dias de hoje justificar-se cabalmente à luz de uma lógica de proteção do próprio cidadão idoso e/ou portador de deficiência. E apenas nessa estrita medida, não podendo assim a disciplina legal ultrapassar o estrita e concretamente necessário e exigido pelo interesse daqueles.
O caráter estigmatizante que estes institutos assumem, em parte pela própria terminologia adotada, associados também à própria complexidade e morosidade dos respetivos processos judiciais, faz com que os familiares com legitimidade para propor as respetivas ações não o façam.
E de igual modo, os próprios visados, olhem para estas iniciativas, não como se tratando de uma preocupação de proteção ou de inclusão, mas como ações limitadoras e desconsideradoras da própria autonomia pessoal acabando por não agir mesmo naqueles casos mais gritantes carentes de tutela.
Impõem-se assim, no âmbito do regime das incapacidades estabelecer prazos para o suprimento da incapacidade por forma a tornar os processos menos burocráticos e mais céleres.
Consideramos, pois, que o regime legal previsto para estes institutos grita por uma alteração urgente e substancial com vista a respeitar não apenas os instrumentos internacionais que nos vinculam, como a Convenção Sobre nos Direitos das Pessoas com Deficiência, bem como os próprios princípios constitucionalmente consagrados, designadamente da dignidade da pessoa humana e da própria igualdade.
Está na hora de reconhecermos a estes cidadãos mais vulneráveis, enquanto sujeitos iguais perante a lei, dotados de personalidade jurídica e com direito a uma real e efetiva proteção do Estado e não apenas do seu património.
Texto escrito em conjunto pelo Dr. Rui Alves Pereira e pela Dr.ª Maria Oom Sacadura
Subscreva a newsletter e receba os principais destaques sobre Direito e Advocacia.
[mailpoet_form id="1"]