Nessa seara, o ano de 2015 terminou com uma excelente notícia em território português: após larga discussão de projetos de lei na Assembleia da República, finalmente a adoção plena por casais homossexuais foi aprovada e, assim, Portugal se tornou (ou se tornaria) o 24º país no mundo a aprovar a adoção de crianças e adolescentes por pares do mesmo sexo. A votação, com uma transversalidade parlamentar que causou alguma surpresa, foi bastante comemorada por juristas, ativistas e pela comunidade LGBTI. A diversidade partidária dos votos a favor da legislação terminou por evidenciar uma postura humanista, afastada de ideais de esquerda ou direita e centrada nos preceitos constitucionais, nos direitos humanos e no direito à parentalidade dessa parcela da população. Mas o júbilo e celebração pouco duraram.
Indo na contramão da tendência europeia e em uma tentativa de fazer Portugal permanecer no lado errado da história, o Presidente Cavaco Silva vetou o diploma, utilizando-se de argumentos obsoletos e descompassados. Aliás, muitas das alegações e justificativas utilizadas pelo Presidente foram ultrapassadas em 2010, quando Portugal aprovou o casamento homoafetivo. Um único argumento de todos aqueles que foram levantados merece destaque e maior consideração: o melhor (ou superior) interesse da criança.
Em um dos pontos do veto presidencial, lê-se que: “Na verdade, é consensual que, em matéria de adoção, o superior interesse da criança deve prevalecer sobre todos os demais, designadamente o dos próprios adotantes. O interesse da criança é a linha-mestra condutora que deve guiar não apenas as opções legislativas sobre adoção como a própria decisão dos processos administrativos a ela respeitantes”. Certamente, não há nada do que se possa discordar nesse ponto. Mas será que aprovar a adoção por casais homoafetivos iria contra o melhor interesse da criança?
Não se pode esquecer que a adoção satisfaz importantes funções sociais. Em um plano, pode proporcionar ao adotando melhores condições de edificação da sua personalidade, especialmente no caso de órfãos abandonados ou institucionalizados, e em outro plano, pode satisfazer, de certa forma, o empenho de muitos casais impedidos de terem a sua prole, nesse caso específico, dos pares homossexuais que não podem se reproduzir como casal sem recurso às técnicas de PMA e maternidade de substituição (nomeadamente no caso de gays). A adoção estabelece um parentesco por opção, pois emerge puramente de um ato volitivo. A verdadeira parentalidade possui sustentáculo na vontade de amar e ser amado. A adoção portanto, nada mais é a do que filiação fundada no amor e no afeto. E será que homossexuais são incapazes de amar e empregar os cuidados que crianças necessitam?
Há mais de uma década e meia atrás, em 2000, a tese de um psiquiatra infantil defendida na Universidade de Bordéus (NAUDAU, S., Aproche psychologique et comportamentale des enfants vivant en milleu homoparental) mostrou que o desenvolvimento psicológico de crianças criadas pelos pais ou mães homossexuais é semelhante à dos infantes criados por duas pessoas de sexos diferentes. Dois anos depois, a Academia Americana de Pediatria se manifestou publicamente em prol da adoção por indivíduo ou par homossexual. De lá para cá, são incontáveis as teses, dissertações, artigos, estudos e pesquisas desenvolvidas no âmbito nas mais diversas ciências humanas e da saúde que demonstram que ser criado por um casal do mesmo sexo não afeta o normal desenvolvimento da criança e do adolescente. Aliás, aqui mesmo em Portugal, a Ordem dos Psicólogos defendeu que não existiam diferenças entre crianças e adolescentes criados por famílias homoafetivas e famílias heterossexuais, de acordo com estudo apresentado ao Parlamento em 2013.
Assim, será que depois de todos esses anos, de incontáveis discussões de projetos de lei na AR, do progresso no espaço europeu e das manifestações de profissionais dedicados aos cuidados social, educacional, jurídico, médico e psicológico de crianças ainda se faz necessário um debate público ainda mais alargado? Parece que não.
O próprio veto presidencial afirma que a adoção visa assegurar a estabilidade e solidez dos novos laços parentais em crianças em situação de fragilidade e vulnerabilidade que, em regra, foram sujeitas ao abandono e aos maus-tratos em idade precoce. O que as mais de 8 mil crianças institucionalizadas em território português necessitam é de uma família estável e afetuosa, disposta a lhes dispensar os cuidados que toda pessoa em desenvolvimento necessita. E isso não parece ser algo que esteja minimamente vinculada à orientação sexual das pessoas ou dos casais.
No Brasil, nessa matéria, observa-se uma situação singular. O país, acompanhando os passos do bloco progressista (cujos países, em sua maioria, se concentram na Europa), terminou por reconhecer a união homoafetiva como entidade familiar e outorgou o regime – por equiparação – da união estável entre homem e mulher. Curiosamente, muito embora o Brasil faça parte do sistema romano-germânico cujo um dos elementos caracterizadores é o fato de o Direito estar organizado em grandes codificações, traduzindo-se em um prestígio da lei escrita, terminou por se comportar, nessa matéria da homoafetividade, como um país da common law, onde o Direito vinha sendo construído pela jurisprudência que se cristalizava ao longo de mais de uma década. Assim, a união estável homoafetiva foi reconhecida e foram automaticamente autorizadas, desde 2011, as adoções por casais do mesmo sexo, conforme os ditames do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Outro fato curioso sobre a situação brasileira é que os projetos de lei sobre regulamentação de uniões homoafetivas nunca chegam à votação em plenário no Congresso Nacional. Passeiam de uma Comissão para a outra, até serem engavetados ad eternum. O poder legislativo peremptoriamente acusa o judiciário de ativismo judicial, de afronta ao princípio da separação dos poderes, mas ninguém ousa falar sobre os projetos de lei que são propostos nas casas legislativas desde o ano de 1995 e nunca chegam à votação. E, muito provavelmente, não chegarão nos próximos tempos, já que o Congresso Nacional brasileiro atual foi considerado o mais conservador desde 1964. O parlamento brasileiro está dominado por fundamentalistas religiosos que se pautam em dogmas e princípios religiosos, fazendo da Bíblia a Carta Magna, em um Estado supostamente laico.
Um resumo sobre Brasil e Portugal nessa matéria: o Congresso Nacional brasileiro deveria se inspirar na Assembleia da República portuguesa, pautando-se nos instrumentos de direitos humanos, nos mandamentos constitucionais da igualdade e da não-discriminação por orientação sexual e em uma consagração do melhor interesse da criança; o Presidente português deveria ter se inspirado nos outros países do bloco europeu, não deixando em uma de suas últimas ações como chefe de Estado a marca de um conservadorismo homofóbico que não harmoniza com a Europa dos tempos atuais. Relativamente ao Brasil, resta a esperança de uma mudança nos quadros legislativos federais nas próximas eleições, que ainda se encontram no longínquo 2018. Já no que concerne a Portugal, o cenário se mostra promissor, uma vez que, em reapreciação na Assembleia da República, é bem provável que os textos vetados tenham o seu conteúdo reafirmado. Se Cavaco Silva ainda for o Presidente, terá de promulgar a lei em até oito dias, sem possibilidade de rejeitá-la. Na hipótese de Marcelo Rebelo de Sousa já ter assumido a chefia de Estado, o panorama não deverá se modificar, já que o próximo Presidente afirmou na mídia que não planeja vetar a legislação.
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