No meio de toda a diversidade de gostos alimentares que nos rodeiam, arriscaria a dizer que ninguém conhece alguém que não goste de pão. O pão é, por isso, um alimento popular e que, por inerência, torna também popular quem o faz: o padeiro. Não é assim de estranhar quando alguém se lembra do padeiro, do seu pão e até da indispensável farinha para ilustrar alguma ideia ou afirmação (quem não se lembra dos famosos “fraco é o padeiro que diz mal do seu pão”, “casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão” e “são farinha do mesmo saco”?).
Ora, parece ter sido mesmo isto que aconteceu no último encontro da Associação das Sociedades de Advogados de Portugal, quando um reputado antigo Conselheiro de Estado do Presidente da República Cavaco Silva e respeitado economista, o Dr. Vítor Bento, convidado a pronunciar-se sobre o “governance” das sociedades de advogados veio a considerar que estas “são um negócio como outro qualquer” e que “o advogado é tão missionário como o padeiro”.
Estas considerações, relevantes pela personalidade que as proferiu e pelo local onde o fez, suscitaram polémica e indignação junto de inúmeros advogados que, gostando de pão e respeitando o padeiro, como o Signatário, se insurgiram quanto ao desconhecimento que as mesmas encerram e potencialmente propiciam.
… seja qual for o contexto profissional em que desenvolve a sua atividade – uma verdadeira “missão” de interesse público e a consagra numa classe profissional específica e sujeita a uma intensa regulação.
Convém, para que dúvidas não surjam, explicar desde já que os princípios e valores que presidem ao exercício da advocacia não impedem os advogados de procurarem ganhar dinheiro, antes pelo contrário. Um exercício da advocacia – seja em contexto societário formal ou informal, em prática individual ou em empresas – desprovido de proveito económico tarde ou nunca alcançará a independência indispensável ao exercício das funções mais básicas do advogado, seja em sede de consulta jurídica, seja no exercício do mandato forense, seja no acompanhamento de qualquer outro assunto que lhe esteja confiado. Não foi, assim, quanto a esta “massa” que o Dr. Vítor Bento falhou a sua análise.
Onde as ideias em análise falham é ao desconsiderarem que o exercício da advocacia se rege – sempre e desde sempre – por regras deontológicas próprias consagradas nos Estatutos da Ordem dos Advogados. Ora, são precisamente estas regras deontológicas que presidem ao exercício da advocacia que a afastam das demais profissões, entre as quais a do padeiro, e atribuem ao advogado – seja qual for o contexto profissional em que desenvolve a sua atividade – uma verdadeira “missão” de interesse público e a consagra numa classe profissional específica e sujeita a uma intensa regulação.
É importante que os advogados portugueses e os cidadãos em geral não menosprezem a importância destas regras deontológicas pois, na verdade, são elas a “massa” que, tal como o cimento que une os tijolos de um sólido edifício, permite unir e congregar as inúmeras e complexas diferentes realidades que dão vida – e ainda bem que dão! – à advocacia dos tempos modernos e destaca os advogados dos demais agentes económicos que se podem preocupar (apenas) “em ser um negócio como outro qualquer”, desprovidos de qualquer “missão” especial.
Que seja claro: onde está um advogado não está um qualquer agente económico (por mais respeitado que o seja), está antes sim um profissional que na ação técnica que protagoniza – do mais sofisticado ao mais simples contrato, negociação ou processo – e no relacionamento que estabelece com os colegas, clientes e demais intervenientes o faz sempre com respeito pelas regras deontológicas próprias da profissão.
Estou certo que apenas e só nos será possível falar na advocacia portuguesa como uma classe una e histórica nas próximas décadas se soubermos manter as várias realidades que legitimamente a constituem e enriquecem unidas e compactas. Tudo sob a égide desta “massa” constituída pelas regras deontológicas e que não se pode confundir com “massas” usadas noutras profissões.
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