De há uns anos a esta parte, temos vindo a assistir, no domínio da vulgarmente crismada legislação penal e processual penal extravagante, à consagração de regimes processuais especialmente musculados, com aplicação a determinadas listas de crimes.
Muitos desses crimes, estando previstos na Lei Penal geral, encontram nesses regimes especiais uma resposta ao nível do respectivo “combate”, investigação e imposição de sanções e/ou de medidas cautelares que os colocam num patamar diferenciado, pautado pelo encurtamento das garantias no âmbito de processos que os tenham por objecto, face ao que se prevê na Lei geral.
O Legislador optou, através de uma tal técnica legislativa – que tem subjacente uma afirmação político-legislativa de superior censura dirigida a determinados tipos-de-crime – pela consagração penal de processos penais (no plural) de geometria diferenciada (ou, adaptando uma expressão usada por Jesús-Maria Silva-Sánchez no virar do século, com “velocidades” diferenciadas).
Essa geometria diferenciada assenta na afirmação (político-legislativa) de que, afinal, apesar de todos os crimes serem iguais, há alguns mais iguais que outros e que, se a configuração de um comportamento humano como crime se basta (e tal não é coisa pouca) com o que nele constitui atentado ao nosso viver colectivo e em que a actividade ou o resultado acolhidos na sua descrição típica não podem ser neutralizados através da imposição de outras consequências jurídicas, outros crimes há que devem ser incluídos em listas que os diferenciem dos demais.
Nessa inclusão não vai ínsito qualquer propósito de exaltação estética. Não são como as listas dos guerreiros Aqueus que, na Ilíada, o narrador se esforça por reconstituir, para que os seus nomes fiquem imunes ao esquecimento humano. Não são como as listas que, historicamente, tentaram reconstituir o que a humanidade perdeu com o incêndio de Alexandria. Nem são como as listas dos livros ou dos discos de que gostamos, dos filmes que apreciamos ou dos convidados para uma festa num final de tarde de Verão. Não são como a lista de Oskar Schindler, onde cada nome era uma vida salva das garras da morte. São listas que não exprimem qualquer ideia de pertença, identidade, ou, se quiserem, de salvação, mas, ao invés, de exclusão e de diferença face à norma.
Essas listas são dedos apontados a tipos-de-crime concretos e – é preciso dizê-lo – aos seus autores, ainda quando sejam apenas suspeitos, dizendo-se destes e daqueles que, o que vale para outros, não pode, afinal, valer para eles.
A bondade de tais opções político-legislativas pode e deve discutir-se. Mas, enquanto o Legislador viver sob a vertigem das listas, devemos manter a esperança de que as listas de crimes às quais é reservada uma resposta processual diferenciada sejam, ao menos parcialmente, como a lista das figuras do escudo de Aquiles: finitas, mas não mudas, já que Homero não nos conta que essas figuras se comoveram com a morte de Heitor às portas de Tróia, trespassado pela lança furiosa de Aquiles.
Mas esperemos, sobretudo, que essas listas não sejam como a lista dos guerreiros Aqueus, que eram tantos que Homero, por cansaço e não por falta de memória (que possuía como dom do prodígio) terminava com a palavra que, na mistura de dialectos em que a Ilíada era transmitida oralmente, equivalia ao termo latino et cetera.
Ana Rita Duarte de Campos | Fórum Penal – Associação de Advogados Penalistas
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