I. Os da minha geração, da geração do pós-guerra, foram instruídos na ideia de que a aplicação de penas criminais visa a protecção de bens jurídicos e a reinserção social do condenado. Estas ideias, impulsionadas pelo denominado movimento da defesa social novo, animaram as grandes reformas do direito penal da segunda metade do século passado e foram aprofundadas com o restabelecimento dos regimes democráticos e a afirmação do valor universal dos direitos humanos, proclamados nos textos internacionais e nas constituições democráticas que se lhes seguiram, após a barbárie que dominou a Europa na 1ª metade do século XX, expressão que foi dos diversos totalitarismos que se serviram também do direito penal como instrumento da submissão dos povos.
É evidente que se o fim da pena ao lado da defesa da sociedade devia ser a reinserção social do delinquente, não podia tolerar a pena de morte, porque a morte abre certamente a porta para uma outra vida, chamemos-lhe por comodidade e terminologia jurídica uma outra “sociedade”, mas não para a sociedade política, a sociedade deste mundo, a que se aplicam as leis terrenas, as leis criadas pelo poder do Estado.
Só que outros interesses e em geral razões políticas impediram que as ideias dominantes de reinserção social tivessem plena aplicação nos sistemas jurídicos. Entretanto ocorreu o 11 de Setembro em Nova York (2001), e todos os atos terroristas que se lhe seguiram e temos ainda bem frescos na memória. Como consequência, ou pretexto, Bush proclamou a guerra contra o crime… Não sei quais podem ser os efeitos, mas tenho por adquirido que as guerras, quaisquer guerras, são sempre cruéis e estúpidas…e receio o populismo penal que neste tempo impregna o pensamento de grandes sectores da sociedade dominados pelo medo e animados por uma certa comunicação de massas a despertarem o espírito securitário que abafa ou limita significativamente os princípios inspiradores do direito penal liberal, desde logo o princípio da humanidade das penas criminais.
II. Nos últimos anos deixei de me interessar especialmente pela pena de morte para dedicar mais atenção e aturado estudo à pena de prisão e direito penitenciário, à duração da pena de prisão e sua execução. Tenho-me preocupado também com as causas do crime e alertado, absolutamente convencido, que o crime não se combate eficazmente nem através do direito penal nem pela aplicação de penas graves. A prevenção do crime passa em grande parte pelo combate às suas causas.
A generalidade dos criminologistas concluiu já que nem a pena de morte nem as penas longas de prisão são eficazes na prevenção da criminalidade, embora por razões não inteiramente as mesmas. A pena de morte, como já observava o Marquês de Beccaria, porque «há muitos que encaram a morte com olhar tranquilo e firme, uns por fanatismo, outros por aquela vaidade que quase sempre acompanha o homem para além do túmulo; outros por uma última e desesperada tentativa, ou de não viver, ou de sair da miséria». A pena de prisão de longa duração porque, como ensinava Carneluti, «o recluso que sai da prisão crê que não mais será considerado como tal, mas as pessoas não!» . Cumprida a pena, «não é um homem livre que sai da prisão, mas sim um ex-preso, com todas as consequências que essa qualificação acarreta» , e frequentemente não resta ao ex-recluso senão voltar ao crime como modo de sobrevivência porque a sociedade é cruel e pouco solidária com os ex-condenados.
A prevenção do crime passe prioritariamente pelo combate às suas causas,tarefa difícil e cara e sem resultados visíveis a curto prazo e por isso que recolha pouca adesão por parte dos políticos, porque não dá votos…
Houve um período da minha vida que fiz muitas conferências sobre a pena de morte, contra a pena de morte. Ao lado da proclamação da dignidade da pessoa humana, fundamento e limite de toda a sociedade organizada em Estado e de todo o Direito, da necessidade de distinguir o crime do homem que o comete, dos vários argumentos sobre a ineficácia da pena de morte na prevenção da criminalidade, sobre a permeabilidade de todos para fazer o mal como corolário da nossa imperfeição e desenvolvimento incompleto, a justificar a misericórdia, tive muitas vezes a percepção que o argumento que mais calava nos ouvintes era o de que os juízes são humanos, embora algumas vezes se arroguem da infalibilidade divina, e por isso como humanos também erram, e erram muitas vezes como o demonstra a história dos erros judiciários. E não só por erro, também algumas vezes por malícia, e muitas por se erigirem em meros serventuários do poder e das leis e não como é da sua natureza baluartes do Direito e servidores da Justiça.
III. A pena de morte, aplicada injustamente, não tem remédio, não pode nunca ser reparada…em prol do executado. O erro humano não tem emenda! Os juristas são muitas vezes imbuídos da arrogância do poder, mas nunca tiveram o poder de ressuscitar os mortos injustamente condenados e executados. A minha experiência de 40 anos nos tribunais chegaria para me convencer que o risco do erro judiciário é tão grande que só por si deveria ser impeditivo da pena de morte.
Permitam-me deixar-lhes um pensamento final. Lembremo-nos de Antígona, a tragédia grega de Sófocles. Antígona vai ser condenada à morte por ter desobedecido às leis de Creonte. Proclama então que a antecipação da morte é um bem para quem «vive no meio de tantas calamidades», de leis injustas, para ser julgada pela divindade e pelas suas leis. Também hoje, um pouco por todo o lado, encontramos muitos delinquentes, segundo as leis do Estado, a reivindicarem o direito de ser julgados por outra justiça. E muitos desses também estão dispostos a antecipar a morte, fazendo a “guerra santa” contra a injustiça social que os subjuga.
Não é a pena de morte ou quaisquer outras penas cruéis que previnem o crime e defendem a sociedade contra os malfeitores; são meios fáceis mas ineficazes. A luta contra a criminalidade há de fazer-se prioritariamente extirpando ou limitando as suas causas, as causas das injustiças deste mundo. No demais devemos ser contidos, prudentes e misericordiosos…
Germano Marques da Silva | Coordenador do Conselho Consultivo do Forum Penal
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