Foi bom que José António Barreiros, que esteve nos trabalhos preparatórios do Código de Processo Penal de 1987, tenha vindo, em recente intervenção pública, “confidenciar” como surgiu a questão do estabelecimento de prazos no novo código e que tratamento lhe foi dado.
No que respeita aos prazos de inquérito, que a Operação Marquês pôs na ordem do dia, estavam em causa, quando da feitura do projeto de código, duas ordens de preocupações: os prazos de instrução preparatória e contraditória, no Código de Processo Penal de 1929, fases a que, grosso modo, iria, agora, corresponder o inquérito, já qua a instrução constituía mera comprovação judicial do despacho de acusação ou de arquivamento, somavam, no máximo, cincos meses, para os crimes menos graves, e sete meses, para os mais graves; depois, com os prazos de inquérito, como em geral com os demais prazos, importava dar resposta à crítica e condenação a que o Estado Português vinha sendo sujeito na Comissão Europeia dos Direitos Humanos, por violação do art.º 6º da CEDH, quando prescreve:” Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá (…) sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ele”. A lentidão da nossa administração da justiça estava na mira da CEDH.
E assim nasceram os prazos máximos de inquérito, no novo processo penal, com as alterações que as reformas foram introduzindo.
Trata-se, diga-se desde já, de manifesta originalidade do nosso direito processual penal, sem par em qualquer outro ordenamento de país civilizado, a lembrar o célebre dito “o que é bom não é original, e o que é original não é bom”… E digo isto porque a solução por nós adotada em 87, e sempre mantida, nas sucessivas reformas, é completamente desajustada, quer se entendam os prazos de inquérito como ordenadores, quer como perentórios, e não constitui exigência imperativa da nossa Lei Fundamental.
Antes de mais desajustada: como é que se compatibiliza a natureza, conteúdo e finalidades de uma investigação criminal com o estabelecimento de prazos fixos?! A ideia de novelo, que tão bem simboliza a investigação criminal, pode conviver com datas limite? A resposta – o almirante La Palice dá-la-ia sem hesitação – é, obviamente, negativa.
Mas será que, apesar de desajustada, a fixação de prazos de inquérito é uma exigência da Constituição da República (CR)?
A resposta, também aqui, é negativa.
Prescreve, efetivamente, o art.º 20º, nº 4, da CR, em linha com a CEDH, que “ Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável”; e o art.º 32, nº2, estabelecendo a presunção de inocência do arguido até à condenação com trânsito, exige que ele seja “(…) julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”. Que o mesmo é dizer, a CR impõe, à semelhança da CEDH, um prazo razoável para o inquérito e tão curto quanto as garantias de defesa o permitam, mas não fixa prazos máximos ou mínimos. Impõe, sim, um prazo razoável e curto.
Postulada a celeridade e a aptidão técnica, a multiplicidade de fatores que integram uma investigação criminal dão medidas diversas de razoabilidade e de celeridade, consoante o crime e as diligências para o averiguar e para identificar os seus autores. E será à luz destes fatores que se concluirá pela medida em que o inquérito foi realizado, ou não, em prazo razoável e curto, que tanto pode ser de três meses, como de três anos.
O art.º 276º do CPP, mau grado a sua epígrafe – Prazos de duração máxima do inquérito -, reiterada no nº 1 do mesmo preceito, não impede que o inquérito dure pelo prazo que seja razoável, por isso que os seus números 6 a 8, e os art.ºs 89º, nº 6, e 109º, também do CPP, evidenciam que o inquérito pode ser concluído para além dos prazos máximos fixados no referido art.º 276º, nºs 1 a 3. Com avocação do processo pelo superior hierárquico do titular do inquérito? Eventualmente. Com medidas de aceleração processual? Sim, se determinadas pela PGR. E com termo do segredo de justiça, se o houver? Também, caso o MP não requeira a prorrogação deste regime, ou, tendo-a requerido, o Juiz de Instrução a indefira. O que tudo mostra bem que, afinal, os prazos de duração máxima do inquérito, não são de…duração máxima!
Chegados aqui, fica claro que, afinal, o regime de prazos de inquérito do novo CPP não tem nada de original: fixa prazo máximo, mas abre a porta à sua prorrogação. Logo, não fixa!
Defrontados com esta realidade, doutrina e jurisprudência quase unânime qualificaram estes prazos de indicativos ou ordenadores, mas essa qualificação, ininteligível para o homem comum, tem servido para descrédito da administração da justiça, por isso que, fora da “tribo” judiciária, dificilmente se aceita que prazos máximos de um ato sejam, afinal, mera disciplina orientadora de uma atividade, sem outra consequência que não seja o controlo hierárquico ou a cessação do regime de segredo de justiça!
Seria, assim, preferível que o inquérito não estivesse sujeito a qualquer prazo, salvo o da prescrição do procedimento criminal., mas em que só houvesse lugar à constituição de arguido, imediatamente antes da acusação, devendo a mesma, a ser formulada, ocorrer em prazo curto e certo, a contar da mesma constituição.
É que, se o Estado não deve abrir mão do poder/dever de proceder a investigação criminal e de perseguir os infratores, logo, inquérito sem prazo, a concordância prática entre este poder/dever e a não sujeição do investigado ao carrego da suspeita por largo tempo, tantas vezes no pelourinho da opinião pública, com grave violação prática da presunção de inocência, e sem saber se é ou não acusado e submetido a julgamento, exige que o investigado, fora dos casos de flagrante delito e de prisão preventiva, não seja constituído arguido logo que haja fundada suspeita e que o inquérito corra em rigoroso sigilo, com óbvia intervenção de juiz, sempre que estejam em causa diligências que contendam com direitos, liberdades e garantias. O que obriga a legislar em termos drásticos sobre segredo de justiça, para que cesse, em definitivo, a orgia comunicacional que dele se serve e se garanta a ignorância do investigado sobre a existência de inquérito.
Não se ignora que há quem entenda que os prazos do art.º 276º são perentórios. Os nºs 6 a 8 do art.º 276º e os regimes instituídos pelos artºs 109º e 89º, nº 6, todos do CPP, evidenciam que o legislador magis dixit quam voluit, criando prazos que melhor quadrariam a circulares interna do MP… Acontece que o referido entendimento admite, embora com pressupostos rígidos, que os prazos de inquérito podem ser prorrogados, evidenciado, assim, que, afinal, eles não são nem máximos, nem perentórios; e isto sem esquecer que o entendimento em causa é expresso em manifesta tautologia, ao sustentar que os prazos máximos de inquérito devem, por imperativo constitucional, ser fixos, e que, por isso, face à letra do referido art.º 276º, nº 1, os seus nºs 6 a 8 não podem ser interpretados como impedindo a perenção… É o exemplo de escola de petição de princípio!
O estabelecimento de um prazo máximo de inquérito que, afinal, não é máximo, contrasta com o prazo perentório para requerer abertura de instrução, contestar e alegar. Ora a defesa só é assegurada se houver um regime de prazos mínimos, com fixação judicial do prazo, sem outra limitação que não seja o prudente arbítrio do julgador, para o que é ociosa grande argumentação. Basta pensar nos megaprocessos, tantas vezes com centenas de depoimentos, dezenas, se não centenas, de milhar de documentos, e milhares de páginas de acusação ou de sentença. 20 mais 30 dias, ou 30 mais 30?!!
Manuel Magalhães e Silva | Fórum Penal – Associação de Advogados Penalistas
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