O recente acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, que julgou inconstitucional a norma do Código Penal que tipifica como crime o “lenocínio” (artigo 169.º), na senda do voto de vencido de Costa Andrade proferido no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 641/2016, contra a jurisprudência dominante deste Tribunal, veio, de novo, chamar a atenção para o consabido princípio da intervenção mínima do Direito Penal, que obriga a deixar para outros domínios sancionatórios os ilícitos sem a suficiente dimensão axiológica.
A dúvida sobre a aplicação da tutela penal a este crime começou a pôr-se a partir da revisão de 1998, quando se eliminou a expressão: “explorando situações de abandono ou de necessidade económica”, e se estabilizou o tipo em 2007, com a supressão da referência aos “atos sexuais de relevo”. Passou, assim, a prever-se como criminalmente responsável aquele que “profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição”.
Nos termos do referido acórdão, não visando o tipo criminal a proteção de um bem jurídico-penal, nos termos definidos pela Constituição – no caso a liberdade e autodeterminação sexual – ou seja, de um bem jurídico decorrente dos “direitos inerentes à dignidade da pessoa humana e (d)os deveres essenciais à funcionalidade e justiça do sistema social”, o referido tipo padece de inconstitucionalidade.
O acórdão enfatiza, porém, que mesmo a ser aceite que a motivação determinante da proibição da conduta fosse legítima, no que respeita ao perigo abstrato da lesão do bem jurídico (como defendido pela posição maioritária que tem vindo a ser sufragada pelo Tribunal Constitucional), seria sempre necessário demonstrar a inexistência ou insuficiência de outras reações sociais para uma proteção eficaz do bem jurídico com dignidade penal.
O Tribunal conclui que “o bem jurídico em causa seria eficazmente acautelado com uma tutela contraordenacional mínima em sede de regulação administrativa da actividade”.
Chegamos então ao ponto crítico que nos levou a escolher este acórdão como tema para o presente artigo.
É certo que o acórdão, tomada a posição acerca da inconstitucionalidade, nada mais teria de acrescentar a este respeito. Sucede que esta diferenciação substantiva entre crime e contraordenação leva-nos, inevitavelmente, a refletir sobre a (alegada) menor dimensão axiológica do Direito Contraordenacional enquanto “tutela mínima” para certo tipo de ilícitos.
A verdade é que cada vez mais fazem parte do âmbito contraordenacional uma série de condutas relacionadas com âmbitos fulcrais da sociedade atual, interferindo com direitos constitucionalmente protegidos, e com consequências graves para os direitos fundamentais dos visados naqueles processos.
Como o próprio acórdão acaba por referir, mesmo os bens jurídicos com dignidade penal podem ser (e são) suficientemente protegidos pela punição, através de uma contraordenação.
O Direito Contraordenacional deixou há muito de servir para tratar das designadas “bagatelas”, gozando atualmente de uma transversalidade nos diversos sectores económicos e sociais, e de um peso sancionatório que, em muitas situações, acaba por ter na prática um efeito punitivo muito mais forte para os infratores.
Veja-se, desde logo, os valores das coimas – consideravelmente superiores, em alguns casos, às multas penais – e as próprias sanções acessórias, que podem ir desde a inibição de condução até à inibição do exercício de determinadas funções, passando pelo encerramento de instalações ou a interdição de atividade, entre tantas outras.
O legislador ordinário, depois de criar um regime geral aplicável ao ilícito social, numa época em que as contraordenações tinham ainda pouca expressão no ordenamento jurídico, foi criando regimes sectoriais de forma aleatória, sem qualquer alinhamento processual, o que levou à verdadeira manta de retalhos dos diversos normativos que preveem e punem a prática de contraordenações.
Como se justifica que em determinados diplomas, o recurso da decisão administrativa possa implicar um aumento da coima para o arguido, e noutros vigore o chamado princípio da proibição da reformatio in pejus? Qual o verdadeiro motivo que determina que só em alguns tipos de processos de contraordenação haja intervenção processual efetiva das entidades administrativas na fase de julgamento? Que razão leva a que apenas em alguns diplomas se preveja expressamente a possibilidade de suspensão da execução da coima ou a figura da advertência? Porque existem diferentes regimes para o tratamento do concurso de infrações ou da reincidência? Tantas e tantas questões ficam sem resposta…
É necessário e urgente criar um normativo uniforme, que seja a base de todo o regime sancionatório contraordenacional, fundado em princípios e regras processuais coerentes, adaptáveis, naturalmente, às especificidades próprias dos diferentes tipos de contraordenações, como acontece já com o Direito Processual Penal.
Não se pode, contudo, deixar de ter em conta que, precisamente pela não tão significativa diferença, em muitos casos, entre os bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal e pelo Direito Contraordenacional, tal regime transversal e uniforme deve considerar os princípios garantísticos basilares dos direitos dos arguidos, que se deverão aproximar daqueles já estabilizados no Direito Penal, de onde se destaca, desde logo, a aplicação das regras de sindicância dos meios de obtenção de prova e, em determinados casos, a possibilidade de recorrer da matéria de facto, criando-se um verdadeiro grau de recurso, inexistente no regime atual.
Urge não continuar a esconder a cabeça na areia e enfrentar a questão.
A reforma do regime aplicável às contraordenações, precisa-se!
Cláudia Amorim – Forum Penal Associação de Advogados Penalistas
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