Há precisamente um ano, sob o título “os fins não justificam os meios”, escrevíamos que fora julgada inconstitucional a norma que fazia depender a atribuição de efeito suspensivo aos recursos de decisões que condenam em coimas, quando aplicadas por determinadas autoridades administrativas, da prestação de caução e da verificação de um prejuízo considerável.
Decidira, então, o Tribunal Constitucional que tal norma restringia a garantia da tutela judicial efetiva e o princípio da presunção de inocência, não passando nos testes da necessidade e da proporcionalidade.
Acrescentava, inclusivamente, o Tribunal Constitucional que a imposição de um ónus de efeitos equivalentes ao cumprimento antecipado da coima falhava também o teste da justa medida, praticamente esvaziando de sentido a presunção de inocência.
Depois de uma promissora e esperançosa decisão do Tribunal de Primeira Instância que não aplicou a norma com fundamento na sua inconstitucionalidade, a questão chegou agora ao plenário do Tribunal Constitucional e, no Acórdão n.º 123/2018, a orientação foi a oposta.
Perguntados sobre se a compressão do direito à presunção de inocência que resulta da norma que faz depender o efeito suspensivo do recurso de decisões condenatórias proferidas pela Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (a ERSE) da prestação de caução e da prova do prejuízo considerável para o sancionado é um meio excessivo para atingir os fins que através dela se prosseguem, 8 Juízes contra 5 votaram que não.
8 Juízes declararam que tal norma é necessária para cumprir o “objetivo fundamental de dissuadir o recurso aos tribunais com intuito dilatório”.
O sacrifício da presunção de inocência foi justificado pelo “desvalor constitucional moderado ou ligeiro” que tal princípio teria no regime sancionatório da energia, quer porque as garantias nas contraordenações não têm o mesmo peso axiológico que têm no processo crime, quer porque os visados são pessoas coletivas (o que nem sempre é verdade, resultando do regime sancionatório que a ERSE aplica o contrário), quer porque – e assim se derrubando um princípio nuclear do Estado de Direito – seria elevada a probabilidade de confirmação judicial da justeza da decisão da autoridade administrativa por ser independente!
Já não está apenas em causa uma restrição ao princípio da presunção de inocência, mas a declaração da presunção de culpa do regulado sem sequer chegar ao Tribunal de Primeira Instância, sem qualquer apreciação judicial da sua posição.
A autoridade administrativa – no caso em apreço, a ERSE – tem ao seu dispor meios alternativos ao pagamento antecipado da coima: a prestação de caução, a adoção de medidas provisórias e a suspensão da prática dos atos que considera ilegais. O regulado nem sequer beneficia de uma regulamentação do modo como pode reaver a coima que pagou e, em relação aos prejuízos causados pelo pagamento antecipado e injusto de coimas que podem atingir valores de milhões, é-lhe aconselhado (pelo Acórdão) o recurso a uma ação de responsabilidade contra o Estado quando bem se sabe que foi a autoridade administrativa concreta que, pelo menos em parte, beneficiou da antecipação do pagamento e, sobretudo, que o sucesso de uma ação desse tipo depende da prova de uma lesão do direito de acesso à tutela judicial efetiva que o Tribunal Constitucional nega no acórdão que aqui se comenta.
No entanto, 8 em 5 dos Juízes aplicadores da Constituição decidiram que os ditos meios alternativos das autoridades administrativas não seriam suficientes para atingir o fim de evitar recursos com intuitos dilatórios, declarando, assim, uma segunda presunção inovadora: a presunção de que os regulados só recorrem aos Tribunais para ganharem tempo e não para que lhes seja reconhecida a inocência.
Os votos de vencido dos 5 Juízes que defenderam vigorosamente o baluarte da presunção de inocência e a circunstância de a interpretação normativa analisada não ser exatamente coincidente com a que anteriormente foi decidida deixam aberta uma ligeiríssima oportunidade para o princípio da presunção de inocência se reerguer.
Sofia Ribeiro Branco – Forum Penal Associação de Advogados Penalistas
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