A 1 de Janeiro de 2019 entrará em vigor o Regulamento (EU) 2017/1986 da Comissão, de 31 de Outubro de 2017, através do qual se procederá a uma alteração de paradigma no regime contabilístico aplicável às locações operacionais, mediante a adopção da norma internacional de relato financeiro 16 – Locações (“IFRS 16”).
Apesar de a IFRS 16 ter o seu âmbito de aplicação essencialmente circunscrito a sociedades e grupos cotados, antevemos, ainda assim, que a alteração proposta acabe também por ter um impacto muito significativo nas demais empresas portuguesas, uma vez que é expectável que a Comissão Nacional de Contabilidade aproveite a oportunidade para promover uma alteração, no mesmo sentido, do Sistema de Normalização Contabilístico, especificamente no que se refere às locações operacionais plurianuais.
Esta alteração terá um impacto significativo a nível fiscal em todas as empresas que tenham o seu modelo de negócio particularmente exposto à utilização de bens em regime de locação operacional plurianual, seja através de arrendamento, utilização de loja, renting ou aluguer. Antecipa-se, pois, que esta alteração terá particular relevância para as empresas dos sectores do retalho, turismo, aviação, transportes (rodoviário e marítimo), telecomunicações, farmacêutico e imobiliário.
Actualmente, e até ao final do ano de 2018, o tratamento contabilístico a adoptar pelos locatários no âmbito de locações operacionais plurianuais que tenham celebrado é elementar: apenas escrituram, como gastos operacionais, os que sejam suportados ao longo dos períodos económicos durante os quais os bens sejam utilizados. Visto de outro ângulo, os locatários não reflectem no seu balanço o valor total das responsabilidades associadas a locações operacionais plurianuais.
Do ponto de vista fiscal, o enquadramento actual dos gastos acima descritos é igualmente elementar: são, de uma forma geral, dedutíveis ao respectivo lucro colectável[1].
A partir de 1 de Janeiro de 2019, o tratamento contabilístico a adoptar em situação semelhante pelos locatários que apliquem a IFRS 16[2] será objecto de uma modificação profunda, no sentido de o aproximar da lógica que actualmente se encontra reservada às situações de locação financeira[3].
Com efeito, a partir daquela data, os locatários que apliquem a IFRS 16 deverão escriturar no balanço um activo e um passivo, da seguinte forma:
- Um activo correspondente ao direito ao uso de um bem sob locação operacional, pelo montante do seu custo, denominado “activo sob direito de uso”[4];
- Um passivo financeiro correspondente às responsabilidades associadas a cada locação operacional plurianual, pelo valor presente dos pagamentos a efectuar ao locador.
Por sua vez, durante a execução dos respectivos contratos, os valores do activo e do passivo vão sendo ajustados em contrapartida do reconhecimento de gastos que, em virtude da alteração do tratamento contabilístico, deixarão de ter natureza operacional e passarão a repartir-se entre (i) depreciações e (ii) encargos financeiros.
Deste modo, as locações operacionais plurianuais deixam de ser perspectivadas, do ponto de vista contabilístico, como meras utilizações de bens e aproximam-se das operações de aquisição de bens com recurso a financiamento bancário (e respectiva utilização).
Quanto a aspectos de índole fiscal, e no âmbito de uma abordagem meramente preliminar, a entrada em vigor da IFRS 16 poderá vir a determinar, por um lado, a necessidade de o legislador adaptar vários diplomas legais ao novo paradigma contabilístico[5] e, por outro, a necessidade de a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”) esclarecer a sua posição relativamente a algumas questões, preferencialmente por via da emissão de orientações técnicas.
A este respeito, e em primeiro lugar, quanto às locações operacionais plurinanuais em curso, é natural que os locatários reconheçam variações patrimoniais decorrentes da transição para o novo tratamento contabilístico, pelo que importa que o legislador esclareça se estas variações serão tributáveis ou dedutíveis sem limitações, ou se, diversamente, estarão sujeitas a um regime transitório.
No silêncio do legislador, e salvo melhor opinião, tais variações patrimoniais deverão ser tributáveis ou dedutíveis (consoante o caso) sem limitações, ao abrigo dos artigos 17.º, 21.º e 24.º, todos do Código do IRC.
Em segundo lugar, no que se refere aos gastos associados a depreciações dos activos sob direito de uso, importa que o legislador proceda à adaptação das actuais redacções do Código do IRC e do Decreto Regulamentar n.º 25/2009, de 14 de Setembro, por forma a permitir a sua dedutibilidade ao lucro tributável dos locatários ao longo da execução da locação operacional plurianual. É que, por um lado, o artigo 29.º do Código do IRC (ainda) não prevê a hipótese de as depreciações resultarem de activos sob o direito de uso e, por outro, os artigos 30.º e seguintes do mesmo Código e o Decreto Regulamentar acima identificado (ainda) não prevêem regras para determinar o período de vida útil de activos desta natureza[6].
Em terceiro lugar, relativamente aos casos em que a locação operacional plurianual incida sobre bens imóveis – por exemplo, através de arrendamento ou de contrato de utilização de loja –, importa que o legislador (ou a AT) esclareçam se o valor dos respectivos activos sob o direito de uso deverá ser (ou não) computado na percentagem de activos relacionados com imóveis, para efeitos de aferição da qualidade dos locatários como sociedades “land-rich”, para efeitos da aplicação do regime de Participation Exemption[7].
Relembre-se que, sempre que, por este efeito o limite percentual de 50% for excedido, às eventuais mais-valias realizadas por sócios na alienação de partes sociais detidas no capital social de sociedades locatárias que se qualifiquem como sociedades “land-rich”, poderão não ser aplicáveis as isenções do regime de Participation Exemption[8].
Em ambas as disposições legais acima referidas recorre-se a expressões tecnicamente imperfeitas para recortar com clareza a natureza dos activos cujo valor deve ser incluído no cômputo do percentual na aferição da qualidade da sociedade locatária como “land-rich”[9].
Por último, quanto a contratos que contenham simultaneamente uma componente de locação operacional de um imóvel e uma componente de prestação de serviços (por exemplo, contratos de utilização de loja), e na medida em que a IFRS 16 induzirá a que locatários e locadores segreguem os valores das responsabilidades atribuíveis a cada uma das componentes, importará que o legislador ou a AT venham a esclarecer qual a articulação que a adopção de tal procedimento poderá significar em sede de IVA, tendo em atenção o enquadramento actual, segundo o qual a totalidade da retribuição paga pelos locatários se encontra sujeita a IVA[10].
Além das questões de natureza fiscal acima elencadas, antecipamos que, em virtude da alteração do tratamento contabilístico aplicável às locações operacionais plurianuais, poderá vir a relevar-se pertinente que os locatários renegociem com os locadores os termos e condições dos contratos que já se encontrem em vigor[11]. Nestes casos, importa ter em atenção que estas renegociações poderão ter um impacto fiscal relevante na esfera dos locatários, uma vez que, sempre que os locadores não revelem a taxa de juro implícita na locação operacional, os locatários terão de recorrer à taxa incremental de financiamento, o que na prática se traduzirá no reconhecimento de gastos com juros de montante mais elevado nos primeiros períodos económicos de execução do contrato. Caso assim suceda, aumentará o risco de em tais períodos ser excedido o limite quantitativo dos encargos financeiros dedutíveis ao abrigo do artigo 67.º do Código do IRC[12].
Face ao exposto, é aconselhável que as empresas avaliem atempadamente, entre outros, o impacto fiscal associado à previsível alteração do tratamento contabilístico a adoptar pelos locatários e, caso seja necessário, definam alternativas que permitam mitigar potenciais efeitos negativos.
No entanto, para que todos os operadores actuem num contexto de segurança jurídica, é essencial que o legislador e a AT procedam oportunamente às adaptações legislativas e aos esclarecimentos necessários, tendo em conta a proximidade da data de entrada em vigor da alteração do tratamento contabilístico, pelo menos no que diz respeito a sociedades e grupos cotados.
[1] Com excepção de alguns gastos com locações operacionais de viaturas ligeiras de passageiros, barcos de recreio e aeronaves, relativamente aos quais o Código do IRC estabelece algumas limitações quanto à dedutibilidade.
[2] De uma forma genérica, apenas as sociedades ou grupos cotados se encontram obrigados a aplicar o dispositivo contabilístico vertido nas IFRS.
[3] A razão de fundo que justificou esta alteração de paradigma quanto às locações operacionais prende-se com o reconhecimento que o volume das responsabilidades plurianuais assumidas pelos operadores económicos era, em alguns sectores de actividade, muito significativo, motivo pelo qual se concluiu ser desejável introduzir visibilidade de tais responsabilidades nos respectivos balanços.
[4]Apesar de este activo sob direito de uso ser não corrente, não existem ainda certezas quanto à classe de activos que o mesmo integrará, sendo possível que, assim que ocorra a transposição para o Sistema de Normalização Contabilística do regime previsto na IFRS 16, venha a integrar a classe de “Investimentos”.
[5] Entre eles, o Código do IRC.
[6] A questão reside na definição do critério para determinar, para efeitos fiscais, o período de vida útil dos activos sob o direito de uso, sendo que, salvo melhor opinião, deve ser seguido um critério que tenha em consideração o prazo de duração expectável do contrato de locação operacional plurianual.
[7] Ao abrigo do número 4, do artigo 51.º-C do Código do IRC e do artigo 27.º do EBF.
[8] Ainda a este respeito, e salvo melhor opinião, julgamos que este esclarecimento terá particular interesse nos casos em que estejamos perante sócios de sociedades locatárias que sejam entidades não residentes, tendo em atenção que a actual redacção da alínea c), do número 2, do artigo 27.º do EBF, ao contrário do disposto no número 4, do artigo 51.º-C do Código do IRC, não excluiu do cômputo da percentagem de bens imóveis aqueles que estejam afectos à actividade da sociedade locatária.
[9] O número 4, do artigo 51.º-C do Código do IRC indica os “bens imóveis ou dos direitos reais sobre bens imóveis situados em território português”, enquanto que a alínea c), do número 2, do artigo 27.º do EBF apenas refere os “bens imóveis” (e não de outros direitos reais sobre bens imóveis) situados em território português.
[10] Com efeito, a isenção de IVA prevista no parágrafo 29, do art.º 9.º do Código do IVA apenas se aplica a locações de imóveis puramente passivas, isso é, que não incluam qualquer serviço prestado.
[11] Pense-se, apenas a título de exemplo, na renegociação de contratos que contenham debt covenants, por forma a prever que os limites de dívida tenham em conta o novo passivo financeiro que é reconhecido ao abrigo da IFRS 16.
[12] Correspondente, grosso modo, ao maior dos seguintes montantes: (a) € 1.000.000; ou (b) 30% do EBITDA (corrigido fiscalmente).
Manuel Simões de Carvalho | Advogado
Subscreva a newsletter e receba os principais destaques sobre Direito e Advocacia.
[mailpoet_form id="1"]