Há dias, enquanto assistia a um programa televisivo, apercebi-me que, no âmbito do mesmo, se pretendia esclarecer os cidadãos e as cidadãs acerca da existência de medidas de desmaterialização e simplificação da Justiça, enaltecendo as qualidades intrínsecas às mesmas, o que para o caso que se pretende analisar aqui, não importa agora detalhar.
Entrando noutra ordem de considerações, para grande perplexidade minha, dei conta que a “voz off”, num tom que me soou até efusivo, declarou, à guisa de remate, que a (grande) vantagem das sobreditas medidas, entre as inúmeras elencadas, era o facto de o(a) cidadão(ã) “não necessitar de Advogado”!
Numa frase, aparentemente inócua, ficou, pelo menos para mim, com reforçada acuidade, definida, traçada e perfeitamente bem compreendida a percepção que os cidadãos e as cidadãs do meu país têm da minha classe profissional. O veredicto é facilmente antecipável: despicienda!
O que vale por dizer que, para os cidadãos(ãs) portugueses, no que respeita aos Advogados(as), menos é mais. Nesta conformidade, se alguma dúvida houvesse, ficamos todos esclarecidos, que será, pois, esta a convicção transversal a uma mentalidade colectiva, posto que a afirmação foi proferida num canal televisivo, com a consequente dimensão e proporção da disseminação de semelhante informação, a qual sempre um meio de comunicação deste teor possui.
A “ideia” não é inovadora, traz mesmo um lastro secular, uma vez que está ínsita numa das mais famosas, polémicas e ironicamente subtis, frases de Shakespeare, na peça Henry VI: “The first thing we do, let’s kill all the lawyers”.
Esta “descoberta da pólvora”, com a virtualidade de possuir aptidão para funcionar como solução para a resolução de todos os problemas que afligem a humanidade, de um qualquer Dick shakespeariano, tem sido vista como uma forma de humor e, para mim, atendendo às características de personalidade e ao carácter da personagem que a profere, naquela peça, possui uma irrefutável afirmação – veemente, profundamente inteligente e notavelmente vanguardista – do seu exacto oposto.
Assim, sob a minha óptica, numa postura responsável, a mensagem que sempre deverá ser transmitida aos cidadãos e cidadãs é que qualquer medida de simplificação e agilização, no sector da Justiça, não pode servir para dispensar a intervenção, o acompanhamento e a supervisão de um(a) Advogado(a).
E é importante que a nossa classe se una contra qualquer tentativa de menorização da nossa profissão, contra qualquer afirmação que aponte no sentido da sua subalternização, denunciando activamente estas “correntes de pensamento” que nos vão crendo mais um “empecilho”, do que uma solução ou que, eventualmente, nos pretendam, paulatinamente, expurgar do sistema de Justiça.
Não por um qualquer interesse de cariz corporativista. Ao invés e nos pontos antípodas de um propósito com esse desiderato, pela singela, mas supremamente relevante, razão de a profissão de Advogado(a) se revestir de manifesto interesse público, porquanto somos nós – de forma deveras incontornável – o pilar inamovível do edifício do Estado de Direito Democrático, pois que nos incumbe assegurar o exercício de direitos, por parte de cidadãos(ãs) e empresas e incumbe-nos zelar pela não lesão dos seus legítimos interesses.
Convém não olvidar nunca que, muito mais do que, ritual e maquinalmente, vestir a Toga, o(a) que o Advogado(a) verdadeiramente faz é abotoar-se de prerrogativas constitucionais – vide artigo 208.º da Constituição da República Portuguesa – podendo e devendo, pois, enfatizar–se que a nossa profissão se encontra constitucionalmente consagrada.
Tudo sopesado e devidamente ponderado, forçoso se torna concluir que há toda uma revolução coperniciana a ser operada neste conspecto: o cidadão(ã) tem de ter a garantia de que o(a) Advogado(a) exerce a sua profissão alicerçado em arreigados princípios éticos e com inquestionável qualidade técnica, mas também deverá estar ciente da essencialidade de se fazer acompanhar de Advogado(a) no que tange o exercício dos seus direitos e/ou a protecção dos seus interesses – desde os mais elementares aos mais complexos – sob pena de os fazer perigar, fatal e irremediavelmente.
A quem informa compete fazê-lo de forma pedagógica e a Advocacia deve denunciar e pronunciar-se quando assim não sucede e apresentar-se, atenta e vigilante, mormente em face de situações deste género, as quais devem merecer repúdio e forte reprovação pública.
A proliferação da tão nefasta e muito censurável procuradoria ilícita que estes casos (e outros fenómenos, como sejam os da redução do sistema de Justiça a preenchimento de formulários, do afastamento dos edifícios onde funcionam os Tribunais dos centros das nossas cidades, passando-se uma mensagem sub-reptícia de inacessibilidade à Justiça pública, um profundo movimento de desjudicialização, com a crescente não obrigatoriedade de constituição de Mandatário(a), em muitos casos, ou de uma reverência “cega” à “divina” celeridade, entre muitíssimos outros) podem potenciar, tem de ser combatida de forma urgente, séria e eficaz, mas, mais do que nunca, enérgica. E tal tem de ser feito numa conjugação de esforços que, sob a minha óptica, não pode deixar de passar por uma urgente alteração legislativa.
Não cairei na tentação de terminar dizendo – numa adaptação para a língua de Camões da frase de Shakespeare – “matem o mensageiro”, qual Lei de Talião, o que seria um erro estratégico, até por acreditar, convictamente, que o “mensageiro” in casu foi útil, conquanto a Advocacia portuguesa não fique, a este respeito, em letargia, entorpecida ou entrincheirada na cumplicidade do silêncio conivente. Pois se assim for, a sugestão de “Dick The Butcher” é que passará a ser desnecessária, por “inutilidade superveniente”, bastando, tão-só, “desligar a máquina” a uma das mais belas profissões que um Homem e uma Mulher – Livres – podem escolher querer ter e aguardar que se oiça soar…Requiem aeternam dona eis, Domine!
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