“Vorazmente teu” é o título português da obra que C.S. Lewis na língua original identificou como “The Screwtape Letters”. Publicado em 1942, é deliciosamente intemporal, contando-nos, de forma satírica, como se pode construir a condenação ao inferno de um homem bom, levando-o de tentação em tentação, reconhecendo a natureza humana nas fragilidades mesmo das boas intenções, do aparentemente inofensivo. É impossível ler o livro sem nos revermos nessas slippery slopes da vida.
Essas rampas inclinadas, nem sempre evidentes, também permitem transições constitucionais, pelo que o subtexto do mestre britânico veio-me à memória quando li o Acórdão n.º 123/2018 do Tribunal Constitucional, ressalvadas, obviamente, as enormes distâncias.
Delimita-se no acórdão a questão decidenda como «a da constitucionalidade da solução consagrada nos n.ºs 4 e 5 do artigo 46.º do RSSE [Regime Sancionatório do Setor Energético], de onde se extrai uma norma nos termos da qual a impugnação judicial da decisão aplicativa de coima proferida pela ERSE em processo contraordenacional tem efeito meramente devolutivo, ressalvados os casos em que a execução da decisão cause prejuízo significativo ao impugnante e em que este preste caução substitutiva do pagamento imediato da coima, casos em que o efeito da impugnação judicial é suspensivo». Na prática: a impugnação tem efeito meramente devolutivo; se a execução da decisão (pagamento da coima) causar prejuízo significativo ao impugnante, o efeito passará a suspensivo, desde que preste caução substitutiva – ou seja, desde que consiga prestar caução por qualquer forma (dinheiro, garantias bancárias, garantias reais…). “Facílimo”, nada comprometedor para a vida dos arguidos (em regra, empresas) e perfeitamente equilibrado num mundo em que a liquidez não interessa para nada…
Por isso, o Plenário do Tribunal Constitucional perde-se no intenso interesse público na eficácia da regulação dos mercados energéticos, convocando a União Europeia, numa apreciação que nem é de constitucionalização fundamental de tal interesse, nem se assume como obiter dictum sem relevo. Mas, sobretudo, faz caminho para, a propósito da restrição de acesso à justiça, transitar de uma linha jurisprudencial para outra pegando na ideia de que tal norma não constitui uma restrição direta, mas uma restrição oblíqua; e, nessa matéria, dar um passo em frente para distinguir um ónus quanto ao efeito e já não quanto ao acesso. E, assim, de oblíqua passou-se a coisa nenhuma quanto à restrição de acesso. A fórmula é sedutora porque nos reconduz a uma pureza académica que permite pensar que algo de estruturante nos escapou. E o Tribunal explica: uma coisa é não aceder à justiça porque se tem um limite que interdita ou condiciona, outra é aceder livremente, mas ter uma limitação quanto ao efeito. Esquece o Tribunal que o resultado prático deste efeito meramente devolutivo é: ou nos sujeitamos à execução da coima – pagando a coima – ou nos sujeitamos a um instituto que, na prática, pode significar pagar a mesma. É uma questão de liquidez. E essa, para o dia a dia das empresas e das pessoas, nada tem sequer de “oblíquo” (expressão que abriu caminho ao passo dado em frente – ou atrás – neste acórdão): é do mais direto que há.
Prossegue o Tribunal Constitucional para aceitar que o princípio da presunção de inocência é património do Estado de direito democrático extensível ao direito sancionatório público, mas, numa análise do princípio da proibição do excesso e seus subprincípios, conclui que «os pressupostos, sem dúvida exigentes, da suspensão provisória da execução da decisão condenatória, não se podem considerar, em termos gerais, inexigíveis ou desnecessários».
Há, ainda, entre outros, dois argumentos do subprincípio da proporcionalidade que merecem ser transcritos, para que se perceba onde quero chegar com o título que escolhi para este desabafo:
- «Como o Tribunal Constitucional tem afirmado reiteradamente […], as garantias do processo sancionatório – designadamente, o direito à presunção de inocência – não têm, no domínio contraordenacional, o mesmo peso axiológico que têm no âmbito criminal, em virtude do diferente alcance ablativo das sanções cominadas e da diferente ressonância social das infrações»;
- «Embora as condenações e sanções sejam decididas por uma entidade administrativa, trata-se de uma entidade independente, tanto no plano orgânico (impossibilidade de destituição discricionária), como no plano funcional (subtração ao domínio da superintendência ou tutela), pelo que a probabilidade de que a justeza da sua decisão venha a ser secundada por um órgão jurisdicional é, relativamente às situações abrangidas pelo Regime Geral das Contraordenações, elevada […]».
O segundo ponto aqui transcrito é paradigmático do distanciamento entre uma visão formal e o conhecimento do mundo. As entidades independentes não diminuíram a tentadora concentração de poderes que contamina decisões sancionatórias. Podem até ter aumentado. Tornaram-se em fóruns de especialistas que preparam esboços da legislação do setor, por vezes determinando-a ao pormenor (ainda que não exercendo o poder legislativo formal), que regulam, encostando violações da regulação administrativa a uma cláusula contraordenacional geral prevista na lei, que supervisionam, fiscalizam e… aplicam as coimas. São independentes no sentido referido pelo Tribunal Constitucional, mas têm em si o conflito de interesses que, noutras perspetivas, não admitiríamos a pessoas e órgãos.
Mais chocante neste ponto é a assunção sem pudor de que há entidades administrativas com mais apetência para acertar do que outras, emprestando, na prática, uma presunção de culpa à decisão da entidade administrativa e ignorando que tal decisão é apenas uma acusação quando levada a tribunal.
A norma resistiu com a posição maioritária do Plenário do Tribunal Constitucional, pelo que, melhor do que eu, remeto para os votos dos vencidos no referido acórdão, salientando-se, mais compreensivamente, o voto de Maria de Fátima Mata-Mouros.
A verdade é que o caminho para a queda tem sido fácil de adivinhar ao longo dos anos, numa verdadeira transição constitucional quanto ao direito sancionatório não penal. Começa-se por considerar, na jurisprudência, que o peso axiológico das contraordenações é distinto (para menos); depois, regulam-se intensamente determinadas áreas, levando tudo às contraordenações porque a “dignidade” não chega para o crime, mas aceitando que as coimas podem ser altíssimas e as sanções acessórias destrutivas – a pretexto de que a “necessidade” assim o impõe pela relevância do setor –; abdica-se da fronteira entre supervisão e processo sancionatório, sobrepondo o dever de colaboração ao nemo tenetur; elege-se a limitação do recurso como um fim em si mesmo de política legislativa.
Quer se queira quer não, apesar das boas intenções e honestidade intelectual de quem assim legisla e julga, estamos a desconstitucionalizar (no sentido de diminuição da tutela fundamental) uma parte cada vez maior do direito sancionatório, esquecendo-nos de que há muitas formas de destruir empresas e vidas que não passam pela prisão. E é nessa subtileza das categorias formais que vamos perdendo algo de fundamental.
Obliquamente vosso.
Pedro Duro | Fórum Penal – Associação de Advogados Penalistas
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