2019 surgiu sob o signo da violência contra as mulheres. E é amargo – para quem serve a Justiça e a Cidadania – perceber que a realidade de tantas mulheres, de tantas meninas, de tantas meninas que se tornaram mulheres nesse triste contexto, é a da sucubência às mãos daqueles que as deveriam amar, ou, pelo menos, respeitar.
2019 chegou, quiçá, exaltando uma realidade social, que não deixa de ser uma relevante questão de política criminal, a qual é tão mais relevante e significativa quanto se deve reconhecer, por ser de fácil constatação, que esta mesma questão não obteve o almejado – por necessário – enfoque e, bem assim, aprofundado tratamento, nas mais diversas áreas, ao qual a área da intervenção jurídica e, mormente, da advocacia não são – nunca poderão ser – com efeito, excepção.
Aqui chegados, não ignoramos que alguns reclamarão que se esclareça o que é que motiva o tratamento do tema da violência exclusivamente no feminino e qual a razão de ordem para uma tal opção.
Na verdade, se algo nos permitiu perceber a vertiginosa contagem de vítimas mortais que o ano de 2019 nos obrigou a fazer, foi que o enquadramento desta pertinente questão, o qual, seguramente, não pode deixar de ser efectuado tendo como pano de fundo uma sociedade onde as clivagens existentes, entre homens e mulheres, radicadas num lastro secular de ignorância e profundo preconceito, por predeterminarem uma ordem e uma concepção da sociedade, em termos tais, que conduz a assimetrias muito marcadas, justificam este tratamento autonomizado da violência, no feminino, porquanto esta é praticada contra as mulheres, enquanto grupo específico de vítimas.
Mas também é exacto, infeliz e inelutavelmente, afirmar-se que as mulheres ainda não alcançaram, em Portugal, em pleno século XXI, sequer, uma voz consistente no espaço público, como também ainda gozam de menor credibilidade social nas intervenções que fazem.
E, o mais grave, é que esta equivocada parametrização da questão perpassa mesmo o próprio sistema judiciário – mesmo nas mais elevadas instâncias – posto que pode até ler- se no Acórdão prolatado pela 1.ª secção criminal do Venerando Tribunal da Relação do Porto, no âmbito do Processo N.º 355/15.2GAFLG.P1, que “[c]om estas referências pretende-se, apenas, acentuar que o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher.”[1]
Mas estas serão apenas algumas das mais relevantes causas genéticas para o “silêncio das inocentes”.
A este respeito reflectiu com oportunidade e acerto a escritora inglesa, Jane Austen, pelo menos em dois dos seus romances – Emma e Orgulho e Preconceito – que configuram dois exemplos de excelência de uma certa aceitação, natural, do silêncio social que estava (e ainda está) destinado às mulheres. O que, muito à frente do seu tempo, felizmente, Austen vivamente e com fina ironia, repudia de forma veemente[2].
Esta indesejável “tradição de silêncio” está, incontornável e indubitavelmente, a montante da ausência de denúncia de muitos crimes, sempre e quando as vítimas são mulheres, cuja prática reiterada e em crescendo, ao nível da violência, conduz, não raras vezes, à morte de muitas delas.
E para esta realidade de horror contribuem e concorrem, em larga medida, as condições sociais onde as relações de género surgem e se desenvolvem, bem como as desigualdades patentes ao nível económico, as quais permitem erigir situações de subordinação ou domínio, quer na esfera pública, quer na esfera privada, do masculino sobre o feminino, bem como o facto de, muitas vezes – se não na esmagadora maioria dos casos – serem crimes praticados num contexto de intimidade o que dificulta (quando não impossibilita) a compreensão de que se trata da prática de crimes, bem como torna penosa e penalizante, para a vítima, a sua demonstração judiciária.
Também o temor e o estigma social são grandes aliados da violência contra as mulheres, já que induzem estas vítimas ao silêncio, compelindo-as a guardar segredo. Ou seja, é a própria vítima a proteger o seu agressor com esse seu comportamento (adoptando a vítima, nestes casos, um comportamento muito distinto daquele que é adoptado perante outros igualmente do foro criminal). Esta especificidade, no comportamento da própria vítima, não deve deixar indiferentes a sociedade e a comunidade judiciária.
Pese embora seja também, igualmente, factual e insofismável, que as mulheres têm logrado alcançar diversos avanços no que respeita a questões de igualdade e à sua necessária protecção contra tipos específicos de violência, também não é menos exacto dizer que é imperativo distinguir a igualdade formal da igualdade efectiva, porquanto na realidade estas, indesejavelmente, ainda não coincidem, remetendo-se a este respeito por economia discursiva para o aresto antedito.
Donde, esta nossa última observação pode permitir extrair a conclusão de que se torna necessário e imperativo, até, um outro tipo de intervenção legislativa (de cariz inovador), quer na ordem jurídica interna, quer ao nível internacional.
Concomitantemente, a par da evolução da ciência legislativa, na prática judiciária também deve haver um maior esforço para uma interpretação e aplicação do direito consentânea com uma real efectivação do princípio da igualdade, com vista à remoção e combate da violência sobre Mulheres – até por imperativo constitucional – curando também de se adoptar uma forma de expressão apta à sua eficiente realização.
Não deixamos de possuir a consciência plena que a nossa proposta nos coloca em face de uma reforma absolutamente revolucionária, que carece dos rasgo e da ousadia de Copérnico e de Galileu, colocando, assim, a comunidade judiciária do lado certo da história, no seio de uma sociedade ainda enformada por um sistema patriarcal e absolutamente atávico.
Está identificado um dos grandes desafios do Século XXI, que vem marcando a história da humanidade como uma controvertida questão de direitos humanos, sem desfecho à vista: melhorar a condição feminina, pois como diria Simone de Beauvoir : “Não se trata para a mulher de se afirmar como mulher, mas de tornarem-se seres humanos na sua integridade.”
Em face de tal, está, naturalmente, a Advocacia portuguesa convocada para travar o combate da erradicação da violência contra as mulheres. E essa mesma Advocacia tem de exigir a intervenção, para a resolução do problema, de quem a representa, ao invés de se conformar – e em conformando-se compactuar – com o constrangedor, claudicante e cúmplice silêncio da sua Ordem que mais parece completamente ignorante em relação a tão pungente tema. Não se reivindica aqui uma intervenção, à guisa de uma qualquer bizantinice, outrossim, é o próprio Estatuto da Ordem dos Advogados, cujo cumprimento cabal a prossecução do escopo da mesma Ordem pressupõe, que o impõe (excepção feita ao Conselho Regional de Lisboa que – uma vez mais trilhando caminho próprio e certeiro – até elegeu o combate à violência doméstica como tema central da formação que ministrará aos/às Advogados/as, em 2019).
A história da Advocacia é a da liberdade e a da libertação. No passado soubemos ser motor propulsor de importantes reformas e conquistas, por ora só devemos almejar contribuir eficaz e efectivamente para parar a contabilização de mais uma vítima mortal que seja, este ano, para o ano e em todos os anos vindouros.
[1] Disponível em https://jumpshare.com/v/XmGPjJyBg6mJMdehLjp8, vide página 18, consultado pela última vez em 05.11.2018.
[2] Maria Regina Pacheco, Revista Avepalavra – ed. 11 – 1º semestre 2011.
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