Ficar em casa. Respeitar a distância entre pessoas. Desinfetar frequentemente as mãos. Usar máscara em espaços fechados e no exterior sempre que existam aglomerados de pessoas. Medir a temperatura corporal antes de ir trabalhar. Estas são algumas das regras que se exigem às pessoas em geral, e, em concreto (e para o que aqui interessa), aos trabalhadores, para que se mitigue o risco de contágio da Covid-19.
E o que acontece se um trabalhador, por exemplo, no âmbito da sua vida pessoal, decidir ir a um jantar de amigos e não usar máscara, nem manter qualquer distanciamento social, tendo o empregador conhecimento de tais factos? Pode o empregador despedir o trabalhador? Pode uma empresa exigir aos seus trabalhadores um comportamento responsável para além da jornada diária de trabalho?
O caso foi discutido recentemente em Espanha, tendo a empresa em causa decidido despedir a trabalhadora. No caso concreto, uma apresentadora de televisão surgiu num festival rodeada de pessoas e sem máscara, tendo nesse contexto publicado diversas fotografias nas suas redes sociais. Alguns dias após a publicação das mencionadas fotografias, a apresentadora testou positivo para a Covid-19 (teste que (alegadamente) semanas depois, se veio a revelar num falso positivo) tendo obrigado a colocar em quarentena várias equipas de vários programas televisivos. Em face do comportamento da apresentadora no festival e das consequências que daí advieram, o canal televisivo decidiu prescindir dos seus serviços.
A questão essencial prende-se em saber se o incumprimento das normas de prevenção contra a Covid-19, fora do contexto laboral, é fundamento suficiente para o despedimento com justa causa.
Por regra, parte-se do pressuposto de que os comportamentos extraprofissionais do trabalhador não têm relevância na relação laboral. Todavia, sempre que tais comportamentos se repercutam negativamente na relação laboral terão de ser valorados e, eventualmente, sancionados (a chamada “Teoria dos efeitos reflexos”).
Importa recordar que, nos termos do disposto no artigo 351.º, n.º1 do Código do Trabalho, a noção de justa causa assenta num comportamento culposo (violação culposa de um dever contratual) do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torna imediata e praticamente impossível a subsistência do vínculo juslaboral.
A aplicação do mencionado conceito de justa causa às condutas extraprofissionais do trabalhador nem sempre é de fácil aplicação. Desde logo porque nem sempre se consegue determinar o dever contratual violado. Em segundo lugar, porque mesmo quando se apure o dever violado, a conduta do trabalhador terá de ser de tal forma grave que justifique a compressão do seu direito à reservada da vida privada face ao direito do empregador, também constitucionalmente protegido, da liberdade de gestão empresarial.
Ora, no caso da violação das regras de prevenção contra a Covid-19 em contexto não laboral, cremos que o requisitos que se poderão seguir para aferir de uma justa causa de despedimento devem ser: (i) o incumprimento de regras legais de prevenção da doença Covid-19; (ii) o trabalhador colocar em risco a sua saúde/vida e a dos demais trabalhadores; e (iii) o trabalhador causar um prejuízo sério à empresa, o qual não tem de ser necessariamente material, podendo, por exemplo, consubstanciar um prejuízo sério a afetação do bom nome do empregador junto dos seus clientes.
Assim, pode constituir justa causa de despedimento, por exemplo, o comportamento de trabalhador com grande visibilidade ou notoriedade pública que desrespeita regras de prevenção da Covid-19 e, com a sua conduta, viola o prestígio da empresa, levando a uma perda de clientela. Pode também ser justa causa de despedimento o comportamento do trabalhador que, depois de ter violado de forma irresponsável as regras de Covid-19 e de testar positivo, contagia subsequentemente um conjunto de colegas de trabalho, levando a que o empregador fique sem recursos suficientes para prosseguir com a sua atividade.
Inversamente, julga-se que caso o trabalhador não acuse positivo para a Covid-19, será praticamente impossível justificar um despedimento, pois desta forma a conduta extraprofissional não terá, em princípio, qualquer reflexo na atividade laboral.
De todo o modo, e mesmo nas situações acima enunciadas que parecem abrir a porta ao despedimento com justa causa, parece-nos que a prova que o empregador terá de fazer para demonstrar o reflexo da conduta pessoal na atividade laboral é muito difícil. A especial particularidade e dificuldade de prova da relevância destas condutas extraprofissionais (de incumprimento de regras contra a Covid-19), face a outras, como sejam as injúrias ou agressões a colegas fora do local de trabalho, reside no facto de ser praticamente impossível demonstrar que a causa de contágio do trabalhador foi aquele ato (não uso da máscara, por exemplo) e momento específico (no jantar de amigos, por exemplo). Como bem sabemos, é extramente difícil determinar quando e como ocorre o contágio.
Em face do exposto, vemos com alguma dificuldade a possibilidade de o empregador conseguir despedir legitimamente um trabalhador, com fundamento no incumprimento, em contexto pessoal, das normas de prevenção contra a Covid-19.
Tanto assim é, que (mesmo) no caso Espanhol, a apresentadora foi readmitida.
Em qualquer caso, mesmo sendo de difícil aplicação, o despedimento com justa causa por comportamentos extraprofissionais violadores das regras de prevenção da doença Covid-19 não é de excluir, devendo ser sempre feita uma análise casuística da situação.
Estela Guerra | Advogada na Macedo Vitorino & Associados
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