A ideia da justificação de faltas por morte de animais de companhia motivou inúmeras mensagens a anunciar matanças do porco, investimentos milionários em peixinhos de água doce e poemas de amizade a galinhas poedeiras. Nas piadas instantâneas, nós somos imbatíveis. Mas não haverá matéria digna de reflexão?
No início de outubro, a ex-deputada do PAN Cristina Rodrigues apresentou dois Projetos de Lei que, por um lado, estendem o regime de faltas para assistência à família aos animais de companhia e, por outro, visam garantir o direito ao luto dos trabalhadores através da justificação de falta de “até um dia por falecimento de animal de companhia do agregado familiar registado no Sistema de Informação de Animais de Companhia (SIAC)”.
A serem aprovadas, as medidas seriam pioneiras. De facto, no R.U. existe uma petição implementação de um dia de luto pelos animais domésticos, criada por uma trabalhadora despedida por faltar depois da morte do seu cão. No entanto, a iniciativa ainda não resultou em qualquer ato legislativo. Há também empresas nos E.U.A. que concedem dias de luto pelos animais de companhia, mas por ser política interna e não por decorrer da lei. Em Itália, um Tribunal julgou justificadas as faltas de uma trabalhadora que vivia sozinha e cujo cão foi sujeito a uma cirurgia. Mas foi o (exigente) quadro legal relacionado com a assistência aos animais que sustentou a Decisão italiana, não existindo uma norma laboral de dispensa do trabalho para aqueles casos.
Em Portugal, além das previstas na lei, são justificadas quaisquer outras faltas autorizadas ou aprovadas pelo empregador. Contudo, embora já não sejam juridicamente qualificados como coisas, o seu abate seja proibido e o seu mau trato ou abandono sejam já matéria crime, parece longínquo o reconhecimento legal de um animal de companhia como um membro “equiparado ao agregado familiar”, ainda que apenas em certas matérias. Efetivamente, apesar de mais de metade das famílias portuguesas terem um animal de estimação e de os Tribunais já reconhecerem o desgosto pela sua perda como digno de tutela efetiva, e mesmo estando o proprietário de um animal obrigado a assegurar o seu bem-estar – o que inclui a garantia de acesso a cuidados médico-veterinários – duvida-se que se agende para breve uma discussão sobre o tema, atendendo, sobretudo, a três ordens de razão.
A primeira tem que ver com questões procedimentais: os Projetos de Lei foram apresentados por uma Deputada não inscrita – que como tal, não tem poder de agendamento de iniciativas próprias. A segunda razão prende-se com o contexto atual. Sem desvalorizar o papel que os animais de companhia podem assumir num cenário pandémico com milhares de pessoas votadas ao isolamento, a verdade é que a sociedade está agora focada na saúde das pessoas pelo que, mal ou bem, a questão não parece estar na ordem do dia. E a terceira razão está relacionada com o quadro legal referente à justificação das faltas e, em especial, à relevância que é atribuída pelo CT – importando a “hierarquia” definida pelo CC – a cada membro da família. E é em relação a este último ponto que poderá ser útil alguma reflexão, não nos parecendo, de todo, insofismável nem a “ordem de importância” que a lei atribui aos elementos da família, nem tão pouco que pertença à esfera exclusiva do legislador a fixação dessa mesma “ordem” ou “hierarquia”.
Ou seja: atualmente, o CT permite que o trabalhador falte justificadamente até 5 dias consecutivos por falecimento de cônjuge, unido de facto ou em economia comum, parente ou afim no 1.º grau na linha reta. Pelo falecimento de outro parente ou afim na linha reta ou no 2.º grau da linha colateral, pode faltar até 2 dias consecutivos. A Lei não prevê a justificação de faltas após o falecimento de tios nem de primos.
Estas faltas justificadas não são remuneradas mas, em tudo o mais, são consideradas como prestação efetiva de trabalho, não sendo contabilizadas para a verificação do dever de assiduidade, cuja violação pode consubstanciar justa causa de despedimento.
Ora, atendendo à diversidade de relações familiares, aos laços de afetividade e proximidade característicos da atualidade – que diferem substancialmente dos laços tradicionais, em vigor quando o CC foi publicado – não seria de equacionar um sistema em que os trabalhadores passassem a designar os membros da família relativamente aos quais preferiam que esses direitos fossem exercidos? Ou porque não pensar numa redação ainda mais lata, em que o trabalhador tivesse direito a um número concreto de dias por ano, e cujo intuito fosse a utilização por morte de entes próximos?
Algo semelhante acontece, por exemplo, na província de Ontário, no Canadá: os trabalhadores têm atualmente direito a até 10 dias de licença de “emergência pessoal”, podendo ser usada para “questões urgentes relacionadas com um determinado número de pessoas identificadas pelo trabalhador” (“listed individuals”). Passando o CT a ter uma redação semelhante – desde que coadunável com obrigações legais relacionadas, por exemplo, com os filhos – seria o trabalhador, e não a Lei, a identificar os familiares (ou as pessoas fora da família) por quem precisaria de se ausentar.
Numa outra redação da lei, em Alberta, os trabalhadores têm direito a até 5 dias por ano para cumprir “responsabilidades familiares em relação a um membro da família” – sem que seja, sequer, designado pelo trabalhador qual o membro ou membros familiares mais próximos.
E existem até Estados que conferem até 7 dias de licença sem vencimento durante o ano para ”assuntos de responsabilidade familiar” – o que, julga-se, poderá incluir a situação de morte ou assistência a qualquer familiar, ou até, numa situação limite, o enterro de um animal de companhia.
O conceito de “família” e as relações de proximidade têm vindo a evoluir e a transformar-se, e ao Direito compete acompanhar essas transformações. Um tio pode ser a figura paterna da família, um primo pode ser quase irmão e um cão pode ser, de facto, – feliz ou infelizmente – o mais importante, ou até o único ser vivo que existe na vida de alguém. E, sem comparar animais com humanos, seria, talvez, importante, cada um escolher o luto que sente que tem que fazer.
Inês Coelho Simões | Advogada sénior da Macedo Vitorino & Associados
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